sábado, 26 de abril de 2014

BERNARDO NO EMARANHADO BUROCRÁTICO DA REDE DE AJUDA




ZERO HORA 26 de abril de 2014 | N° 17775



ADRIANA IRION


CASO BERNARDO. Documentos revelam como REDE DE AJUDA recebeu Bernardo



Ofícios, despachos e decisões judiciais a que ZH teve acesso contam como diversos órgãos perceberam e encaminharam as dificuldades que o menino de 11 anos enfrentava em sua família.

Quando o Ministério Público de Três Passos instaurou, em 16 de dezembro de 2013, um procedimento administrativo – o PA número 00917.00052/2013 – para apurar suspeita de que Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, sofria negligência afetiva, o sofrimento a que o menino órfão de mãe estava submetido já datava de mais tempo – pelo menos desde julho, segundo registros oficiais.

Ainda assim, mesmo que a cidade, a escola, o Conselho Tutelar, o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (Creas), o Ministério Público e a Justiça tenham sabido, em algum momento, que ele tinha “medo”, vivia em “abandono”, “em situação de risco”, sujo, malvestido, por vezes desnutrido, não existe dentro do PA que virou processo judicial nenhum depoimento formal de Bernardo.

Há apenas recortes do que o menino que vagava pelas ruas teria dito a autoridades e a amigos em momentos diversos, mas nunca foi consignado em documento um depoimento completo de Bernardo que, sozinho, na manhã de 24 de janeiro, ingressou no fórum para pedir ajuda. Um sucinto relatório do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica), que recebeu Bernardo naquele dia, registra que ele declarou “estar sofrendo maus-tratos em casa, principalmente advindos de sua madrasta, recebendo ofensas verbais”.

No mesmo dia, ele foi levado até a promotora da Infância e da Juventude de Três Passos, Dinamárcia Maciel de Oliveira, que o ouviu por mais de meia hora. O que ele contou à representante do MP não está formalizado no processo. Bernardo desapareceu e foi morto 70 dias depois desse contato. Nesse período, ainda participou de audiência de “conciliação” com o pai, o médico-cirurgião Leandro Boldrini, um dos presos por suspeita de envolvimento em sua morte. O que o pai prometeu diante do juiz e da promotora e o que Bernardo falou, as condições que deu para aceitar permanecer sob a tutela do pai e da madrasta, também não está escrito no processo.

MP e Judiciário defendem que o procedimento foi correto e que não havia exigência de um depoimento formal ser registrado.

– Houve uma subavaliação da palavra da criança, que é sujeito de direitos. Tudo que ele falou deveria estar consignado – avalia João Batista Costa Saraiva, juiz aposentado e consultor do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Zero Hora teve acesso a documentos que contam parte da história de Bernardo, de como a rede de proteção percebeu e registrou as dificuldades que ele enfrentava no seio familiar.

– Tão importante quanto buscar as responsabilidades pelo crime, é aprender com o caso, estudar o que ocorreu, capacitar as pessoas. O aprendizado tem de ser usado em casos futuros, para que eventuais equívocos, eventualmente cometidos, sejam evitados – defende o desembargador José Antônio Daltoé Cezar, que atuou por mais de duas décadas na área da Infância e Juventude.



Menino estava morto quando foi enterrado


Um laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP) que chegou à Delegacia Regional de Três Passos ontem aponta que o menino Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, já estava morto quando foi enterrado, em uma cova na Linha São Francisco, em Frederico Westphalen. O resultado aponta que o estudante não teria aspirado terra depois de ter sido enterrado. A perícia verificou se havia no pulmão e na traqueia possíveis detritos similares a terra. O resultado deu negativo.

Os peritos que estavam na região auxiliando a polícia a desvendar o assassinato do menino retornaram a Porto Alegre com amostras promissoras de vestígios biológicos do levantamento do local da cova. O perito criminal Evandro Gomes não detalhou o conteúdo, mas disse que a avaliação do material pode contribuir com elementos novos para esclarecer o caso.


Justiça tira guarda de bebê dos pais


Suspeitos de participação na morte de Bernardo Ulglione Boldrini, o pai do menino, Leandro Boldrini, e a madrasta, Graciele Ugulini, perderam ontem a guarda de sua filha, de um ano e cinco meses. O juiz Fernando Vieira dos Santos, da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Três Passos, atendeu à solicitação do Ministério Público (MP) e suspendeu o poder familiar de ambos. A guarda provisória ainda não foi definida. Para a promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira, da Infância e Juventude, não é seguro que a menina permaneça com os pais caso venham a ganhar liberdade provisória – Boldrini e Graciele estão presos.

Outra solicitação da promotora foi atendida ontem. O juiz Marcos Luís Agostini, da 1ª Vara Judicial da cidade, decretou liminarmente a indisponibilidade dos bens de Boldrini, que fica proibido de realizar movimentações financeiras e vender móveis ou imóveis. Para o MP, o bloqueio é necessário para que não se corra o risco de Boldrini usar bens de Bernardo para pagar sua defesa por suspeita de participação no crime.



EMARANHADO BUROCRÁTICO

O que foi registrado em arquivos sobre Bernardo Uglione Boldrini 

Ofício do Colégio Ipiranga para o Conselho Tutelar, em 28 de novembro de 2013

“Bernardo é um menino que demonstra a necessidade de chamar a atenção para si e de forma, muitas vezes, negativa.”
“Seu comportamento fora de sala de aula com professores e outras pessoas do âmbito escolar costuma ser carinhoso, educado, prestativo...”
“Após a vinda do Conselho Tutelar para conversa com o menino e da entrega de notas, parece que se sentiu valorizado e protegido, tendo na ocasião apresentado uma melhora no comportamento e interesse escolar...”

Ofício nº 236/2013, do Conselho Tutelar para o Ministério Público, em 29 de novembro de 2013

“... levamos os profissionais do CREAS para conversar com o pai, que, no encontro, não foi muito compreensivo, mas prometeu tomar algumas providências em relação a BERNARDO, fazer um acompanhamento psicológico e psiquiátrico, mas, nos últimos dias, parece que o caso se agravou, segundo denúncias de profissionais da saúde e a família da JU (Juçara Petry, com quem o menino costumava ficar), o Bernardo está muito debilitado, abatido e desnutrido, quase que abandonado...”

Ofício nº 0177/2013, do Centro de Referência Especializado da Assistência Social para o MP, em 3 de dezembro de 2013

“O senhor Leandro nos recebeu prontamente e em sua fala negou todos os fatos.”
“Outro fato que nos relataram, nos chamou a atenção e que vale aqui ressaltar é que com apenas 09 anos (idade anotada errado, pois tinha 11 anos) foi ele que providenciou, juntamente com sua catequista, toda sua documentação para poder cumprir o sacramento da comunhão. Nem seu pai, nem sua madrasta acompanharam o ano catequético de Bernardo, sendo que não foram em nenhuma reunião, nem mesmo na primeira comunhão do filho.”
“A comunidade de Três Passos, em geral, sabe que Bernardo é negligenciado por seu pai e sua madrasta. O fato que nos apresenta é que ele é apenas um menino de 09 anos e que não está recebendo os devidos cuidados que a idade lhe exige.”

Despacho de abertura de procedimento pelo MP, em 16 de dezembro de 2013

“Instaura-se PA, em favor da criança, que se encontra em situação de risco em razão da negligência do pai/guardião.”
Ação do MP pedindo colocação em “família extensa, mediante guarda provisória”, em 31 de janeiro de 2014

“Ora, excelência, o caso é delicado e, até certo ponto, raro, dada a iniciativa da criança, ao buscar, por si mesma, uma solução para o problema familiar vivido.”
“...optou-se por promover a presente medida sem a inquirição do Dr. Leandro Boldrini na Promotoria de Justiça de modo a evitar que o menino Bernardo, eventualmente, pudesse sofrer maior agravo em sua já fragilizada relação intrafamiliar.”

Despacho do juiz Fernando Vieira dos Santos em 3 de fevereiro de 2014, quando marcou audiência de conciliação

“Ainda, para evitar represálias ao protegido, dada sua condição de vulnerável, o pai deve ser citado para a audiência na própria data da mesma e na mesma oportunidade em que o filho o for, diligenciando o oficial de Justiça na proteção do menino até o horário da audiência em questão.”

Petição em que o MP pede à Justiça a suspensão da guarda do menino pelo pai, feita depois do desaparecimento, em 7 de abril de 2014

“...imediata suspensão da guarda provisória concedida ao genitor da criança em face da flagrante negligência paterna com o bem-estar da criança favorecida, a qual se encontra em lugar ignorado.”

O juiz Fernando Vieira dos Santos decide, em 8 de abril de 2014, o que Bernardo pedia a amigos e autoridades: viver sob a guarda de outra família. Na data da decisão, o menino já estava morto havia quatro dias

“As circunstâncias do desaparecimento revelam um quadro como o descrito na inicial: se a criança não é submetida a agressão física, parece ser tratado com excessiva indiferença pela madrasta e incompreensível omissão pelo pai...”
“Aparentemente, BERNARDO, após o falecimento de sua mãe e da constituição de nova família pelo pai, passou a ser um estorvo à nova instituição familiar. ”
“Frente a essa situação, se BERNARDO for encontrado com vida e em boas condições de integridade pessoal, seu retorno à degradada realidade que enfrenta em seu lar parental é a medida menos acertada no momento. Logo, a suspensão da guarda, pretendida pela agente ministerial, é medida deveras acertada.”



Família de Carlos e Juçara Petry, que costumava acolher o menino, é citada nos ofícios

COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - A justiça do papel precisa acabar. Este fato revelou o quanto é nociva esta postura burocrata da justiça brasileira. As leis precisam mudar para que os poderes e instituições de justiça possam se transformar e se estruturar na promoção de uma justiça mais célere, mais próxima, mais vigilante, mais atenta com as circunstâncias, mais comprometida e tomando decisões mais ágeis e coativas. Não precisamos de juízes mediadores, mas magistrados presentes e coativos aplicando a lei com severidade e observando sempre a supremacia do interesse público em relação ao particular. 

Não se pode crucificar as autoridades envolvidas neste caso, pois é assim que funciona a justiça no Brasil, num emaranhado burocrático que dita passos de tartaruga aos processos, leva ao tempo infinito as decisões, transfere às cortes supremas o transitado em julgado, enfraquece os tribunais, distancia o magistrado da realidade e segrega instrumentos essenciais e auxiliares da justiça. 

2 comentários:

  1. A justiça demorou tanto a atender ao apelo do menino Bernardo, que lhe custou a vida. Lamentável. Espero que nunca mais aconteça.

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  2. Que Deus cuide das nossas crianças, amém!

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