terça-feira, 8 de outubro de 2013

A MISÉRIA E O ABANDONO, AO LADO DA FOME, SÃO OS SOFRIMENTOS MAIS PÉRFIDOS DA CONDIÇÃO HUMANA

ZERO HORA 8 de outubro de 2013 | N° 17577

PAULO SANT’ANA


Menino de rua
Há incontáveis milhares de meninos de rua em todas as cidades brasileiras.

Posso considerar que fui menino de rua na minha infância. Pelo mesmo motivo por que tantos são meninos de rua: maltratado por meu pai, expulso por ele da minha casa por vezes, noutras fugido de casa com medo de meu pai, o fato é que fui menino de rua durante muitos anos.

Ser menino de rua é uma desgraça. Lembro-me da profunda e sofrida incerteza que tinha sobre meu futuro. É muito triste uma criança não ter futuro.

E mais grave ainda se torna esse infortúnio. Um menino de rua não sabe se terá como alimentar-se durante o dia e não sabe onde vai dormir, pior ainda se houver chuva e frio.

*

Quando me lembro desse terrível destino do qual pude fugir, as lágrimas tomam conta de meus olhos.

Perto do que fui, penso agora, sou muito mais do que eu era. Não sou rico, mas me considero rico por ter sido menino de rua.

Era desastroso não poder voltar à noite para a casa de meu pai. Quando uma criança sente que é indesejada no seu lar, acho que nisso é que reside uma das grandes aflições do ser humano.

*

Dou até um conselho que pode parecer tolo aos meus leitores, mas que para mim tem profundo significado: sempre que um leitor ou uma leitora minha se defrontar com um menino de rua, ajude-o de alguma forma, dando-lhe alimento ou alguma pequena quantia em dinheiro para que alivie sua enorme dificuldade.

No tempo em que fui menino de rua, não existiam as drogas de hoje.

Fatalmente, um menino de rua de hoje apelará para as drogas e mergulhará num ainda mais profundo abismo dificilmente retornável.

*

Já dormi em porões, entre ratos e baratas, sem fósforo para iluminar o meu ambiente.

Já dormi sem cobertas, tendo como travesseiro apenas o chão de terra, nem sei como sobrevivi a esse desterro.

*

A miséria e o abandono, ao lado da fome, são os sofrimentos mais pérfidos da condição humana.

Se já é triste que um homem não tenha amigos, mais arrasador ainda se torna que, sendo criança, não tenha como fazê-los. Isso é a mais desalentadora solidão.

Com esta coluna, pretendo apenas daqui lançar minha homenagem aos meninos de rua, implorar para que possam talvez os meus leitores lançar sobre os meninos de rua que avistem, se é que já não o fazem, seu olhar de piedade e alcançar-lhes por alguma forma uma ajuda, mesmo que signifique materialmente pouco, muito será para esses seres desanimados que vagam pela cidade na busca desesperada por uma mudança para melhor do seu destino.

Até hoje tenho medo das ruas: elas reservaram para mim durante muito tempo um atroz sofrimento.

Foram tempos de atroz sofrimento.

FOCO NAS CRIANÇAS

ZERO HORA 08 de outubro de 2013 | N° 17577

EDITORIAIS



A semana da criança é uma oportunidade para o Rio Grande do Sul recolocar no foco de suas preocupações a proteção à infância. Uma data com tal apelo somente terá real significado se propiciar intervenções substantivas na realidade. E a realidade da população infantil no Estado é preocupante, pelas deficiências crônicas do suporte social e por fatos recentes. Os gaúchos estão se descuidando em relação a um problema de extrema gravidade, caracterizado por agressões e abusos a crianças e adolescentes. De acordo com o Centro de Referência no Atendimento Infantojuvenil do Hospital Presidente Vargas, houve um aumento de 25% nos casos de agressão a crianças em 2013.

É apenas um referencial pequeno no universo estadual, mas deve servir de alerta, porque temos outros exemplos recentes de verdadeira barbárie: os abusos sexuais praticados por dois homens contra um menino de oito anos na zona norte de Porto Alegre, o estupro de uma menina de sete anos na Zona Sul e a agressão seguida de morte de um bebê, também na Capital. Não há, nesses episódios lamentáveis, como recorrer-se à desgastada desculpa de que se trata de problemas eventuais ou localizados. As agressões estão dentro de um contexto de omissões da sociedade e do setor público.

O Rio Grande do Sul é relapso em relação a medidas de prevenção e à estrutura socioeducativa. Como exemplo do descaso, registre-se a vergonhosa negligência governamental na área da educação pré-escolar. As virtudes da pré-escola, como mostram especialistas, não estão apenas na possibilidade de convivência e aprendizado entre as crianças. Estruturas públicas de acolhimento infantil, desde berçários e creches, significam que as crianças estarão menos expostas a toda espécie de riscos e violência enquanto seus pais trabalham. Mas cuidar das crianças é tarefa bem mais ampla que não se restringe apenas aos governos. É, antes, um dever constitucional e moral de todos – família, escola e comunidade.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

ESMOLA FINANCIA O USO DE DROGAS DAS CRIANÇAS DE RUA

FANTÁSTICO Edição do dia 06/10/2013

Pesquisa mostra que esmola financia o uso de drogas das crianças de rua. Em um grande mutirão nacional, 565 crianças foram ouvidas em 10 capitais, no mais profundo retrato sobre meninos de rua já feito no país.



Quantas são? Quem são? Por que elas abandonaram a casa, a família? Você também já se fez essas perguntas diante de uma criança de rua. O assunto é comovente, importante e tema da reportagem especial de Marcelo Canellas.

Acho que viver na rua é você sentir na pele que você não tem mais nada, que você tá no fundo do poço.

Não há uma única grande cidade brasileira que não conviva com essa vergonha.

Saem das suas comunidades e vêm refugiar-se nesse grande campo de refugiados aqui que é o centro de São Paulo.

“Por isso que a gente considera que eles são refugiados urbanos”, explica Lucas Carvalho, psicólogo do projeto Quixote.

Crianças ainda, ou mal saídos da infância, e já sem esperança alguma.

Fantástico: Que que cê acha que vai tá fazendo com 18 anos?
Jovem: Com 18 ainda é de menor ou maior?
Fantástico: Se fizer 18 já é maior. Até 18 é menor.
Jovem: Vai pro presídio.
Fantástico: presídio? Você acha que vai pra lá?
Jovem: Vai, tio. Ó, ou vai para o presídio ou morre!

Por que eles estão na rua?

Fantástico: Você tá com 14 anos, né? Com quantos anos você saiu a primeira vez de casa?
Jovem: Com nove, dez, por aí.
Fantástico: Você lembra como é que foi esse dia?
Jovem: Eu fugi.

Quantos são? Quem são? O que querem?

Fantástico: Você não quer ficar na rua, quer?
Jovem: Não! Quero parar, quero mudar minha vida.

A ONU já falou em cinco milhões. O IBGE nunca contou. O fato é o que o número de meninos e meninas de rua ainda é um grande mistério.

“Nós não sabemos quantas crianças, quem são elas, onde estão”, afirma Manoel Torquato, coordernador da campanha ‘Criança não é de rua’.

Em 2011, o governo pagou R$ 1,5 milhão para um instituto de pesquisa contá-los.

Mas no Maranhão, por exemplo, só acharam 23 meninos. E o número apurado no Brasil inteiro, 23.973, caiu em descrédito.

Fantástico: Não adianta um pesquisador chegar com uma prancheta na mão e fazer perguntas convencionais pra uma criança de rua?

“Não adianta. Os educadores sociais, os técnicos, as equipes que acompanham esses garotos e essas garotas, esses sim conseguem se aproximar”, responde Manoel.

O projeto ‘Criança não é de rua’ preferiu uma pesquisa qualitativa, por amostragem, feita justamente por educadores. Num grande mutirão nacional, 565 crianças foram ouvidas em 10 capitais, no mais profundo retrato sobre meninos de rua já feito no país.

A plataforma digital rua Brasil sem número, validada pela Universidade Federal do Ceará, descobriu que 87 % das crianças e adolescentes de rua são negros ou pardos. E 77% são do sexo masculino.

Quem está na rua, deixa de ir à escola. 11% são analfabetos e 47% não completaram o quinto ano do Ensino Fundamental.

Fantástico: Você sabe ler?
Criança: Não.
Fantástico: Sabe escrever?
Criança: Não.
Fantástico: Você tem documento?
Criança: Não. Vou tirar ainda.

Qual o motivo de ir para a rua?

Seis por cento dizem que é a violência doméstica. 9,8% fogem da miséria. 23% relatam conflitos na família. E 37% são atraídos pelas drogas. As drogas também são o principal motivo da permanência nas ruas para 54% dos meninos. Depois vem os conflitos na família: 18%.

Criança: Uso só quando eu tenho dinheiro. Quando eu não tenho eu não uso não.
Fantástico: E você consegue o dinheiro aonde?
Criança: Ah, eu peço aos outros.

A pesquisa confirma: 53% dos meninos conseguem dinheiro pedindo esmolas. 11%, vendendo mercadorias no sinal.

O que significa que a esmola financia o uso de drogas, pois 63% dos meninos gastam o dinheiro em bocas de fumo. E só 22% comprando comida. Mas a grande surpresa da pesquisa rompe um preconceito.

“A população em geral acredita que esses meninos ou são órfãos, ou foram abandonados pelos pais, ou têm situações graves de violência praticada no contexto familiar. Na verdade são conflitos apenas. Existe uma família ali”, afirma Manoel.

Só 8% são órfãos. 92% têm família. E 77% consideram a mãe a pessoa que mais amam.

Depois vem a avó, com 10% e o pai, com 7%.

Esse dado objetivo mostra claramente a importância da família. Ao contrário do que se pensava, nem todo menino sem casa é um menino sem lar. Existe alguém esperando por ele, existe alguém procurando por ele. Existem laços de afeto que nem a violência, nem a miséria e nem o desinteresse dos políticos conseguem romper.

“Quando eu acordo com o coração muito aflito, que é quando eu levanto e não falo pra ninguém aonde eu vou. Eu saio em busca dele”, conta a mãe de um jovem.

Dez, doze horas por dia, zanzando por São Paulo.

Fantástico: Onde que você procura?
Mãe: Na cracolândia, no meio dos viciados.
Fantástico: Você encontra ele ali?
Mãe: Às vezes, sim.

Mas nem todos os argumentos do mundo evitam mais uma viagem perdida.

“Ele já escapou pelos meus dedos que não dá para segurar mais. Ele já conheceu esse mundo de louco aqui fora”, conta a mãe de um menor de São Paulo.

Mesmo assim, ela voltará amanhã para alimentar a mesma esperança de sempre.

“Que ele desperte, acorde, abra os olhos e fale assim: ‘não, hoje eu vou embora para a minha casa de vez’”, completa.

“Às vezes eu piro, sabe? Às vezes eu fico falando sozinha. Por quê? Eu me pergunto: no que eu errei? O que eu tenho de fazer? Entendeu? Eu fico perdida”, diz a mãe de um jovem do Rio de Janeiro.

Outra mãe já perdeu a conta das noites em claro.

“Ela é menina. Eu não consigo dormir, eu não consigo comer, pensando onde está a minha filha”, lamenta.

Os educadores da Associação Amar estão tentando ajudá-la.

Eles trabalham junto aos meninos que dormem na rua, e tentam convencê-los a voltar para casa.

Mas são muitos os casos em que crianças pequenas são informalmente adotadas por moradores de rua adultos.

“São laços muito tênues, que se rompem muito fácil. Basta acontecer um problema maior”, explica Roberto José dos Santos, coordenador da Associação Amar.

Por isso o esforço de recompor as famílias de fato, que ainda preservam laços de afeto, como o da adolescente que está sendo procurada pela mãe.

Há cinco anos vivendo na rua, a garota de 14 anos diz que não usa mais drogas.

Menina: Eu não tenho vício de nada, eu tenho vício de rua.
Fantástico: Vício de rua? O que é vício de rua?
Menina: É querer, você querer ficar na rua, viver na rua.

Ela acha que vício de rua se perde com a maior paixão:

Fantástico: Se eu fosse jogar basquete, aí eu ia me distrair.
Menina: Ah, esporte?
Fantástico: É. Me distrair com alguma coisa. Porque se eu ficar em casa só, vou pensar nas pessoas da rua, na rua.

O sonho dela é jogar com o ídolo Michael Jordan, o Pelé do basquete americano.

Menina: Pra mim, parece que ele é feliz.
Fantástico: Parece que ele é feliz, né? E você é?
Menina: Não.
Fantástico: Não? Por quê?
Menina: Porque a rua não traz felicidade.

A mãe, artesã que dá duro, mas ganha muito pouco, mora numa comunidade que não tem nem água potável, que dirá quadra de basquete.

“Eles precisam colocar coisas na cabeça desses jovens, entendeu? Um esporte, alguma coisa concreta, entendeu? Alguma coisa concreta”, diz a mãe de uma jovem do Rio.

Há carinho e reconhecimento de parte a parte. E cada uma sabe de seus erros e fraquezas.

“Eu que fui desobediente. Não foi minha mãe. Minha mãe falou pra mim, minha mãe fala. Eu que vou e fujo dela”, confessa uma menor.

“Tudo o que eu preciso é que ela segure mais na minha mão, sabe? Fica comigo. Às vezes eu falo com ela como eu estou chorando agora: ‘fica comigo. Que aqui você está protegida. Aqui eu posso te agarrar e falar: não, aqui ninguém vai tocar em você’”, conta outra mãe.

Talvez a saída esteja nelas mesmo.

Aí está, para os coordenadores da pesquisa ‘Criança não é de rua’, um caso em que um empurrãozinho do Estado teria recomposto a família com facilidade.

“Dado uma atenção maior às famílias, esse motivo de ida para a rua vai diminuir drasticamente. E essa atenção à família não é foco das políticas públicas praticadas hoje”, analisa Manoel Torquato.

As iniciativas de estado têm se restringido ao recolhimento forçado e o envio das crianças de rua
para abrigos mantidos pelas prefeituras.

“Nós não queremos ninguém dormindo nas ruas do Rio de Janeiro. Nós achamos que a rua não é lugar para ninguém dormir, seja criança ou adulto. E a gente quer que as pessoas recebam do poder público uma oferta de solução para esse problema, digna, e que respeite o seu direito”, diz Adilson Pires, Secretário de desenvolvimento social do município do Rio de Janeiro .

O Projeto Quixote, de São Paulo, prefere apostar no convencimento como estratégia de recomposição das famílias. Foi assim que conseguiu algumas vitórias.

“Ele não pensa mais em droga, ele não pensa mais em fugir”, diz a mãe de um jovem.

O garoto fez questão que a mãe conversasse conosco. Ficou ao lado dela durante a entrevista, foi carinhoso o tempo todo, mas ainda mantém a temporada na rua na sombra do silêncio.

Fantástico: Por que você resolveu sair?
Jovem: Não quero falar.
Fantástico: Não quer? Tá bom. Não quer, não precisa falar.

Também não é pra menos.

“Era 24 horas na Luz, procurando ele. Uma vez um usuário ia me furando, do cabo de um cachimbo, porque eu achei ele no meio do usuário”, desabafa a mãe do jovem.

Foram quatro anos de insistência.

“Teve um dia que o pai dele, no Natal do ano passado, o pai dele passou o ano novo na rua, procurando ele, na Luz. Muito Natal e Ano Novo. Ele nunca passava com a gente”, lembra a mãe.

Ficou três meses em uma clínica de desintoxicação. E já está há seis meses sem fugir de casa.

“Sempre eu pedia, né? Meu Deus, para guardar meu filho. E ele me deu ele de volta, agora, são e salvo”, comemora a mãe.

Talvez a solução esteja nas próprias crianças. E em não aceitar mais como normal que elas não vivam a plenitude da infância.

“Não é porque estamos lidando com vidas secas que sejam vidas ocas. As crianças têm, sim, muita potência. Chega do que tá acontecendo, não é mais possível continuar acontecendo o que está”, diz o Lucas Carvalho, do Projeto Quixote.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

NÃO SILENCIAR





ZERO HORA 04 de outubro de 2013 | N° 17573



EDITORIAIS


É alarmante o aumento da violência contra crianças e adolescentes no Estado, evidenciado não apenas por recentes episódios de verdadeira barbárie como também por estatísticas oficiais. Só nos últimos dias, o Estado registrou a morte de um menino de um ano, o estupro de uma menina de sete e o caso de abuso contra um garoto de nove anos. Essa dura realidade é confirmada por estatísticas oficiais como as do Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil (Crai), que só neste ano, até setembro, registrou 1.399 ocorrências de agressão a crianças e jovens até 18 anos, quando no ano passado o total havia ficado em 1,5 mil. Um quadro dessa gravidade exige reação rápida e eficaz, não apenas por parte do setor público, mas de todos os organismos da sociedade civil que, de alguma forma, podem contribuir para uma mudança cultural capaz de revertê-lo.

O aumento do número de ocorrências pode ser atribuído, em parte, à maior preo-cupação com o registro de fatos que, até recentemente, tinham repercussão restrita a quatro paredes. A mudança foi acelerada a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da estruturação de uma ampla rede de apoio. As causas, porém, são múltiplas, indo desde a falta de planejamento sobre o número de filhos pretendidos pela família até o envolvimento de jovens e, muitas vezes, dos próprios pais com drogas.

Como a maioria dos atos de violência contra a infância e a adolescência ocorre na casa das vítimas e têm o envolvimento direto de familiares, essa é uma questão cuja responsabilidade não pode simplesmente ser transferida para os organismos governamentais. O enfrentamento precisa envolver profissionais de múltiplas áreas nas quais devem ser buscadas as causas dessas atrocidades, como sociologia, psicologia, economia, política e urbanismo, entre outras.

Seja qual for o caso, o aumento no número de agressões a seres humanos ainda em fase de formação física e psicológica precisa de uma reação à altura, que vá além da indignação e da pressão por pena máxima para os criminosos. Todas as pessoas atentas e responsáveis precisam se unir em favor da causa, pois não silenciar é uma premissa básica para o combate a essa covardia.