domingo, 28 de fevereiro de 2016

PICASSO VAI À FASE



ZERO HORA 8 de fevereiro de 2016 | N° 18459

LARISSA ROSO E JÚLIO CORDEIRO

Texto: larissa.roso@zerohora.com.br
Fotos: julio.cordeiro@zerohora.com.br


JOVENS INFRATORES RECRIAM obras do pintor espanhol em exposição que terá abertura em 15 de março no Memorial do Ministério Público, na Capital. Dinheiro arrecadado com venda dos trabalhos será revertido aos internos



Diante de folhas de papel pardo afixadas na parede, os alunos fazem um exercício respiratório, com movimentos ritmados de inspiração e expiração, enquanto riscam formas aleatórias espontaneamente. Os participantes da oficina Artinclusão são internos da Comunidade Socioeducativa (CSE), unidade da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) que concentra os jovens de perfil mais agravado do Estado, envolvidos em crimes como homicídio e latrocínio (roubo com morte). Eles chegam para as primeiras aulas, muitas vezes, estressados, contrariados, entediados pela rotina de meses ou anos em regime de privação total de liberdade.

– Me tiraram da cama para fazer isso? – desdenha um adolescente ao deparar com giz de cera, julgando estar sendo submetido a um exercício demasiado infantil para sua faixa etária.

A atividade tem o objetivo de relaxar, permitindo que os aprendizes se concentrem para a tarefa que será realizada nas duas horas seguintes e externem suas sensações mais profundas. Inspira, expira, pinta. Aloizio Pedersen, artista plástico e idealizador do projeto, aproxima-se de Juliano*, 19 anos:

– O que você está vendo aí?

Juliano observa o resultado prévio de sua incursão inicial e despretensiosa pela arte. Identifica oito traços no mural.

– A minha família – constata o garoto, visualizando a representação rudimentar dos pais, dos cinco irmãos e de si próprio que construiu sem se dar conta.

Abismado com a aparente vidência do mestre, o estudante questiona:

– O senhor é pai de santo?!

Motivador, o diálogo estimulou Juliano a seguir frequentando os encontros por três meses e a concluir o primeiro quadro de sua vida. Professor da rede estadual, Aloizio, atuando na Fase há três anos, promoverá a partir de 15 de março, no Memorial do Ministério Público, a 10ª exposição com obras de internos – pela primeira vez, a mostra será composta por telas concebidas pelos autores dos delitos mais sérios, convidados a executar releituras das criações do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973). Os trabalhos são colocados à venda, e o valor, como incentivo, é repassado aos infratores. Alguns dos rapazes costumam comparecer ao evento no dia da abertura – há encontros emocionados entre filhos e pais, orgulhosos dos artistas forjados na reclusão da Vila Cruzeiro.

Guernica, uma das obras mais famosas e reverenciadas de Picasso, retratando a devastação causada pelo bombardeio nazista sobre a cidade basca de Guernica na Guerra Civil Espanhola, está entre os quadros que Aloizio apresentou à turma. No perfil dos internos, são recorrentes pelo menos três características: a origem em famílias desestruturadas, um histórico em que eles próprios foram vítimas de violência – com frequência, dentro de casa – e a existência de parentes próximos também criminosos.

– Eu queria trabalhar a violência desses guris, o que eles tinham a ver com essa obra, o que eles acrescentariam a ela – explica Aloizio.

Samuel, 18 anos, é um dos alunos que recriaram Guernica. Em sua terceira passagem pela Fase – desta vez, devido a um homicídio –, ele optou pelo trecho do original onde desponta a cabeça de um cavalo. Como os demais colegas, ficou à vontade para acrescentar à releitura elementos de livre escolha. O garoto não consegue justificar por que decidiu inserir uma flor, figura que já havia surgido em outro trabalho seu na oficina. Membros da equipe assistencial perceberam uma evolução: no princípio, os rabiscos de Samuel se assemelhavam a algemas. Com o tempo, os traços se tornaram mais nítidos: as argolas de metal viraram flores.

– Ele fez sem se dar conta. Internamente, começou a trabalhar questões mais positivas – atesta Gabriela Cioccari Santos, psicóloga da CSE.

Nos dias de visita, Samuel recebe a namorada, que vem do Interior em uma viagem de duas horas. Romântico, gosta de escrever poemas à menina. Ela suplica:

– Larga essa vida de cadeia.

Como outros companheiros de clausura, Samuel está atrasado nos estudos – ainda cursa a 6ª série. Copia o conteúdo sem absorvê-lo, tem extrema dificuldade para progredir, há momentos em que não compreende o vocabulário corriqueiro de uma conversa. Ao observar sua versão de Guernica concluída, exposta em um dos corredores do prédio à espera da exposição, admira-se:

– Parece que não fui eu que pintei. Não levava muita fé em mim.

Aos 19 anos, Renato cumpre medida socioeducativa há um ano e 10 meses por ter participado de um latrocínio. Inconformado por ter de entregar o carro, o homem que foi vítima do roubo, pensando estar sendo ameaçado por uma arma de brinquedo, encorajou-se a reagir. Entrou no veículo já em poder de Renato e de um amigo, surpreendendo-os pela ousadia.

– Qual foi a parte que você não entendeu que isso aqui é um assalto?– exaltou-se Renato na ocasião.

Segundo o relato do interno, o comparsa teria então apertado o gatilho. A sequência de fatos é imprecisa: uma tentativa frustrada de vender o carro, uma “banda” pela cidade. Sob o efeito de drogas, Renato não registrou os detalhes.

– Eu tava muito louco nessa noite – conta.

Na oficina de arte, ele também retratou uma porção do cenário desolador de Guernica. Uma âncora ocupa quase toda a tela de 1m20cm x 0,70cm. A robustez do objeto tem significado evidente: representa o apoio recebido da família. Duas vezes por semana, a mãe aparece na CSE com salgadinhos, bolachas e frutas para o filho.

– Eles colocaram uma pedra em cima do que aconteceu. Estão me dando uma segunda chance – afirma Renato.

UMA TENTATIVA DE RECOMEÇO

Superada a estranheza do princípio, os internos passam a encarar as aulas de arte como uma possibilidade de fuga do cotidiano quase imutável. Juliano, o rapaz que desenhou os oito riscos representando a família, logo descobriu que replicar no branco da tela as formas de As Três Dançarinas era um desafio capaz de lhe serenar a fervura da mente. Do exemplar surrealista de Picasso, Juliano elegeu o personagem central: uma figura de braços erguidos e seios desnudos.

– Foi muito bom para mim. Aprendi muita coisa. Às vezes o cara está estressado, dá para esquecer muita coisa.

O interno conta que sua trajetória começou a entortar cinco anos atrás, aos 14. Até entrar na Fase, vivia de roubo e tráfico – dois de seus cinco irmãos estão presos. Um assalto a uma loja, que terminou com a morte de um comerciante, levou-o ao confinamento, que já dura um ano e nove meses.

Juliano estava longe de casa quando o filho nasceu. Lamenta não ter testemunhado o menino começando a caminhar. As duas ou três visitas mensais da criança interrompem o dia a dia que julga tedioso, de muitas horas trancado no “brete” (como são chamados os dormitórios individuais, semelhantes a celas, fechados a cadeado). Por falta de passatempo mais interessante, ele assiste à novela A Regra do Jogo, da TV Globo. Gosta de acompanhar o desenrolar do enredo envolvendo a facção criminosa – os bandidos da ficção são arrogantes e violentos como os da vida real, garante Juliano.

Quanto ao futuro, o desejo é mudar de cidade e conseguir emprego em um frigorífico.

– Quero ficar tranquilo, caminhar podendo olhar para trás – justifica.

Os planos de Juliano simbolizam o cenário ideal almejado para os internos depois de concluídas as medidas socioeducativas: um recomeço longe do crime. Muitos voltam a delinquir ou morrem em seguida, após cruzar o portão da CSE, por conta de rixas que permaneciam em suspenso, no aguardo de um desfecho. A psicóloga Gabriela destaca as conquistas, ainda que transitórias, de projetos como o Artinclusão, que consegue dar um mínimo de leveza a biografias tão intrincadas.

– Não queremos disfarçar que eles não são bandidos, que não têm um potencial de risco para a sociedade. Eles se sentem muito malvistos, com baixa autoestima, e buscam o crime para terem visibilidade. Tentamos trocar isso por um trabalho que possa ser visto pela sociedade – explica Gabriela. – Queremos fazer aflorar outra coisa: além de serem traficantes, o que mais eles podem ser? – provoca.

Responsável por introduzir, durante as sessões com pincéis e tintas, uma brecha de liberdade na rotina do cárcere, o professor Aloizio se aventura em uma resposta:

– Com a arte, você trabalha o indivíduo integralmente: a emoção, o intelectual. Bota tudo para fora. Sobra lugar dentro para aprender outras coisas. Esses meninos vêm da invisibilidade, e agora ele são artistas. Por trás deles tem um mundo de coisas. A vida vai lhes dar outras possibilidades.

* Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

OS JOVENS E O CRIME




ZERO HORA 27 de janeiro de 2016 | N° 18427


EDITORIAIS



A criminalidade entre os jovens acionou mais um alarme, desta vez nas estatísticas sobre a internação de jovens infratores no Estado. Entre 2011 e 2015, o número de internados por assaltos, em unidades da Fase, aumentou 79,2%, e o de envolvidos em assassinatos cresceu 77,4%. Não é um fenômeno recente, mas o dado novo é o assustador crescimento da delinquência na adolescência, como revelou reportagem publicada por Zero Hora. Confirma-se uma tendência nacional, de aumento do envolvimento de jovens e até mesmo crianças com o crime. Tanto que, por vários motivos, mas especialmente pela proximidade com criminosos, 28 jovens são assassinados por dia no Brasil.

O adolescente passa a ser um infrator grave, muitas vezes pela autoria de homicídios, e ao mesmo tempo é vítima da ação descontrolada de traficantes e assaltantes. A punição, prevista em estatuto específico, certamente não é a única solução para esse cenário. Fica cada vez mais evidente que a sociedade precisa, ao mesmo tempo que pune, oferecer programas de prevenção, que passem pela família, pela escola e pelas instituições. Essa não é, portanto, uma tarefa apenas do poder público, embora caiba aos governantes e aos órgãos responsáveis pela infância criar e fiscalizar espaços de educação e lazer para a juventude. O dever dos pais, de seus eventuais substitutos e de todo o entorno familiar também não pode ser negligenciado.

É importante que, entre as causas do quadro desolador que se apresenta, seja levado em conta o dano causado pelo mau exemplo oferecido pelos adultos. Como observa o juiz aposentado João Batista Saraiva, a partir da experiência pessoal e como consultor do Unicef, é preciso considerar que o descrédito nas autoridades e nas instituições, abaladas por escândalos, interfere diretamente no comportamento dos jovens. Reverter esse quadro significa enfrentar, ao lado dos adolescentes, uma realidade que conspira contra os que se esforçam pela postura ética dos jovens e também dos que deveriam inspirá-los.

domingo, 17 de janeiro de 2016

REAÇÃO À VIOLÊNCIA JUVENIL



ZERO HORA 17 de janeiro de 2016 | N° 18417


EDITORIAL


A agressividade entre adolescentes, que resulta em tragédias, cresce na mesma medida da omissão dos adultos.




As mortes provocadas por conflitos entre adolescentes acionaram, há muito tempo, um sinal de alerta ainda sem resposta adequada das instituições, da família, da escola e das comunidades. O Rio Grande do Sul enfrentou, na semana passada, mais um desses traumas, quando uma menina de 14 anos foi esfaqueada por outra de 15 anos, em Bagé, porque ambas estariam disputando o mesmo namorado. Outro exemplo de morte absurda é o do menino de 17 anos massacrado por outros jovens, alguns adultos, tomados por fúria coletiva, em agosto do ano passado, na saída de um clube de Charqueadas. São casos que, por terem resultado em morte, têm compreensivelmente maior repercussão.

Mas a violência juvenil repetida, quase banalizada, produz também outros danos cotidianos, com sequelas físicas e também psicológicas nas vítimas, nos familiares de agredidos e agressores e nas pessoas que com eles convivem. Jovens agridem-se na escola, nas ruas, em clubes, em jogos de futebol. O mais banal dos motivos é capaz de provocar enfrentamentos não só individuais, mas ações em grupo. Passou da hora de o Brasil enfrentar a epidemia de violência entre meninos e meninas a partir da verificação de causas, para que as reações não sejam apenas as punitivas.

É evidente, pelos indícios disponíveis, que a agressividade vem sendo potencializada pela postura de expressivo contingente nas redes sociais. O mundo virtual, com tudo o que contribui para comunicar e aproximar, acaba por agregar também a outros tantos fatores o estímulo à agressão, à disseminação do ódio, à transformação de debates em duelos e à transposição de comportamentos antissociais para a vida real. O anonimato muitas vezes oferecido pela internet ganha rosto, nome e sobrenome no desfecho de casos como os citados acima.

É o resultado da perda de referências, limites e respeito mútuo. Multiplica-se um fenômeno que envergonha o Brasil. Os jovens entre 15 e 29 anos já são as principais vítimas das mortes por armas de fogo no país, numa tragédia em grande parte explicada pela degradação provocada pela guerra das drogas e pela disputa de espaços. Mas, fora desse contexto da criminalidade, há também uma propensão à violência entre adolescentes sem qualquer relação com delinquentes e entre as mais variadas classes sociais.

Para compreender e enfrentar o que se passa, o Brasil poderia copiar experiências como a do Instituto de Direitos Humanos da Catalunha e da organização espanhola United Explanations, que tentam interferir direta e positivamente, via redes sociais, em debates que possam fomentar o ódio, a discriminação e a intolerância. É outro o contexto, de um país também atordoado pelas migrações, mas que serve como exemplo de abordagem, sempre no sentido da pacificação. É óbvio dizer também que família, escola e seus entornos não podem apenas se indignar com o que ocorre. É preciso agir, em mutirões como o que acontece na Espanha, para que os próprios jovens sejam propagadores de paz e tolerância. Mas essa é, essencialmente, uma missão para os adultos.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

HORA DE ELEGER OS GUARDIÕES DA INFÂNCIA



ZERO HORA 02 de outubro de 2015 | N° 18312


ALINE CUSTÓDIO E FERNANDA DA COSTA


MISSÃO AMPLA. POPULAÇÃO GAÚCHA ESCOLHERÁ 2,6 mil novos conselheiros tutelares no domingo, em todos os municípios do Estado


Coração da defesa da infância no país, os conselhos tutelares terão as primeiras eleições unificadas neste domingo. O voto facultativo dos eleitores escolherá cerca de 30 mil novos conselheiros no Brasil, 2,6 mil deles no Rio Grande do Sul. Esses profissionais terão uma missão ampla: zelar pelos direitos de crianças e adolescentes, que representam quase um terço da população gaúcha.

Eles precisam atuar tanto em situações de direitos ameaçados ou violados quanto na fiscalização de entidades que trabalham com a infância. Em 2014, os conselheiros tutelares gaúchos realizaram mais de 240 mil atendimentos relacionados à violência, ao uso de drogas e à negligência das famílias ou do poder público, conforme dados do Tribunal de Contas do Estado (TCE).

Próximo às comunidades, o conselho tutelar tem de funcionar como uma ponte que liga a população aos órgãos públicos. Conforme a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), esses órgãos são o destino de 70% das denúncias recebidas pelo Disque 100.

– Ser conselheiro tutelar é uma função de cobrança pelo bom atendimento às crianças e aos adolescentes, seja das famílias ou das instituições públicas e privadas – resumiu o presidente da Associação dos Conselheiros e Ex-Conselheiros Tutelares do Rio Grande do Sul (Aconturs), Rodrigo Farias dos Reis.

Dar mais visibilidade aos conselheiros foi um dos motivos da aprovação da lei que incluiu no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) uma data unificada em todo o território nacional para a eleição deles, em 2012. O processo deve ocorrer a cada quatro anos, no primeiro domingo de outubro do ano posterior ao da eleição presidencial. Antes da lei, cada município realizava sua eleição em datas diferentes, que às vezes esbarravam nos pleitos políticos. Com isso, a escolha dos defensores da infância ficava em segundo plano, sem a visibilidade merecida. A ex-ministra dos Direitos Humanos, Ideli Salvatti, afirmou no início do ano que “muitas vezes os conselheiros eram escolhidos de forma indireta” por causa das eleições em data livre.

A unificação foi comemorada pelo Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedica). A presidente do órgão, Marta Nileni Alves Gomes, avalia que a medida pode ampliar a divulgação das eleições e a participação popular na hora do voto, o que fortalecerá os conselhos. Embora tenha mais de 1 milhão de eleitores, Porto Alegre contou com os votos de apenas 29 mil pessoas na última escolha dos conselheiros, em 2011.

MANDATO PASSOU DE TRÊS PARA QUATRO ANOS

Outra mudança é que, a partir das eleições unificadas, os conselheiros passarão a ter mandato de quatro anos, com chance de uma reeleição. Antes, eram apenas três anos de trabalho, o que dificultava a realização de cursos estaduais ou nacionais.

– Isso vai permitir uma formação continuada dos conselheiros em todo o país. Antes tinham cursos em que alguns estavam entrando e outros saindo, por causa dos calendários municipais. Para quem estava em final de mandato, acabava sendo dinheiro público jogado fora – explica o promotor Júlio Almeida, diretor da Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Porto Alegre.

Embora tenham data estabelecida por legislação federal, as eleições aos conselhos tutelares têm regras determinadas por leis municipais. Com isso, cada cidade estipula suas normas para o processo, como por exemplo a forma de votação (que pode ser por urna eletrônica ou cédula de papel) ou o número de candidatos (há cidades em que os eleitores podem votar em cinco pessoas e outras em apenas uma). As eleições são responsabilidade de cada Conselho Municipal dos Direitos da Criança e devem ser fiscalizadas pelo Ministério Público. Todos os eleitos tomarão posse em 10 de janeiro.

Conforme o ECA, que completou 25 anos em julho, cada município deve ter pelo menos um conselho tutelar, composto por cinco conselheiros eleitos por voto popular. Para grandes cidades, a orientação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) é de pelo menos um conselho para cada 100 mil habitantes. No Brasil, existem 5.956 conselhos tutelares em 99,89% dos municípios, que elegerão pelo menos 29.780 conselheiros. Já o Rio Grande do Sul conta com 518 conselhos, e três novos serão criados após as eleições, o que representa 2.605 vagas para novos eleitos. Mesmo assim, o número ainda é insuficiente em relação à população. Conforme o TCE, faltam pelo menos 20 instituições no Estado.



Metade dos conselheiros de Porto Alegre tenta a reeleição

Dos 50 conselheiros tutelares que atuam na Capital, 25 são candidatos à reeleição. A outra metade deixará a função em 9 de janeiro, entre eles o atual presidente dos conselheiros, Elton Fraga, da microrregião 6 (Centro Sul e Sul). Depois de duas gestões seguidas, ele se despedirá da casa amarela localizada no bairro Ipanema, onde ajudou a atender 16 mil expedientes – casos abertos pelos conselheiros da região – desde 2008.

O ex-líder comunitário e morador do bairro Belém Novo fez do prédio a sua segunda casa. Diferentemente de outros conselhos, o da microrregião 6 ganhou decoração especial com adesivos coloridos pelas paredes, identificação dos conselheiros nas portas das salas de atendimento e distribuição de brinquedos – arrecadados em doações – às crianças atendidas. Ideia de Elton para tornar o ambiente aconchegante.

– Sou dedicado 24h à causa das crianças e dos adolescentes. Um conselheiro precisa ser assim. Tudo tem urgência – afirma.

Elton diz que não há como separar da vida pessoal os problemas que chegam ao conselho. Confessa que muitas vezes, em casa, se pega pensando em casos. Pelas mãos dele, calcula, passaram mais de 4 mil famílias ao longo dos dois mandatos.

– A recompensa maior é, depois de muitos anos, um jovem adulto chegar e dizer que foi salvo graças ao seu trabalho – diz, tentando conter a emoção.

Na Zona Leste, quem se despedirá após seis gestões é a professora de matemática Sônia Madeiros Nascimento, 50 anos. Depois de atuar nas microrregiões do Bom Jesus e do Centro, Sônia, moradora da Zona Norte, abraçou a Lomba do Pinheiro.

– Fui pelo desafio de atuar numa região que estava recebendo o conselho pela primeira vez. Para ser conselheiro é preciso, principalmente, gostar de gente. É ver e vivenciar um outro mundo, completamente diferente do teu – garante.

Sônia pretende voltar a dar aulas, mas não se distanciará das questões relativas ao conselho. Ela seguirá acompanhando os expedientes que abriu até a finalização deles.

– Faço questão, mesmo não recebendo para isso. São histórias que ajudei. Dependendo do caso, é necessária a minha participação como testemunha na Justiça. Não posso abandonar a função. Afinal, lidamos com vidas – justifica.

NO ESTADO, 10% NÃO APRESENTA A ESCOLARIDADE MÍNIMA

O ECA estabelece que os candidatos a conselheiro tutelar tenham idoneidade moral, mais de 21 anos e residam no município. A orientação do Conanda é de que também apresentem Ensino Médio completo, mas as exigências além do estatuto dependem das leis municipais. No RS, a maioria dos municípios cumpre a orientação, mas 10% dos conselheiros em atividade não têm escolaridade mínima, conforme dados do TCE.

Na Capital, os candidatos precisam ter Ensino Médio, comprovar no mínimo dois anos de trabalho na área da infância e obter pelo menos nota 6 em prova sobre o ECA.

– A prova os obriga a sentar e a estudar a legislação – diz Arnaldo Batista dos Santos, presidente da Comissão Eleitoral do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.



Os escolhidos vão enfrentar precariedade e falta de equipe



Os 2,6 mil conselheiros tutelares que tomarão posse no próximo ano terão de enfrentar estruturas impróprias, equipamentos ruins e falta de equipe de apoio no Rio Grande do Sul. Além disso, nas grandes cidades, os eleitos também podem ser sobrecarregados de trabalho, já que o número de conselhos não corresponde à população – faltam pelo menos 20, segundo o TCE.

Quanto à estrutura, uma pesquisa do tribunal mostrou que 42% das entidades não tinham sala reservada para o atendimento, o que pode revitimizar crianças e adolescentes em busca de ajuda. Outro problema é a falta de veículos: 23% dos conselhos não têm carro e 53% têm de compartilhar veículos com outros setores. Em relação aos equipamentos, 46% dos de informática foram classificados como ruins ou regulares. Do mobiliário, 44% são satisfatórios.

Embora um sistema informatizado tenha sido desenvolvido para que as escolas encaminhem a Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente (Ficai) ao Conselho Tutelar, obrigação legal, 49% das entidades gaúchas não têm o programa.

– O Brasil tem a terceira maior evasão escolar entre cem países, e esse sistema poderia mapear os motivos – lamenta a auditora pública externa do TCE Elisa Rohenkohl, que participou da pesquisa.

Para que os conselhos driblem as precariedades em ano de crise financeira, a presidente do Cedica, Marta Nileni Alves Gomes, afirma que é preciso eleger prioridades.

– A gente sabe que a demanda é muito grande, então é preciso focar nas urgências. Se precisa de carro, trabalhe para conseguir um. Depois, a segunda prioridade, em um plano de ação. Sabemos que nesta crise os governos não darão conta de tudo de uma vez, mas não podem dar conta de nada.


Seis conselhos para quem vai assumir


O que Elton e Sônia apontam como importante para a função

-Gostar de trabalhar com pessoas

-Conhecer o ECA

-Saber ouvir e compreender os relatos

-Ter comprometimento com a causa

-Saber trabalhar em equipe

-Ter consciência de que os casos não podem esperar


Rio Grande do Sul falha em registrar dados sobre violações


Criado para armazenar informações sobre as violações aos direitos das crianças e dos adolescentes, o Sistema de Informações para Infância e Adolescência (Sipia) – Módulo para Conselhos Tutelares tem dados subnotificados no país. O Rio Grande do Sul, por exemplo, só cadastrou 29 violações em todo 2014, contra 49.333 do Paraná. Ao TCE, no entanto, os conselhos tutelares gaúchos informaram ter atendido 240 mil casos.

– Isso mostra a falta de alimentação. Precisamos de dados para pensar políticas públicas – afirma o promotor Júlio Almeida.

Ao TCE, 1,6% dos conselhos gaúchos afirmaram nem ter aderido ao Sipia. Além disso, a presidente do Cedica, Marta Nileni Alves Gomes, lista outros motivos para falta de alimentação:

– Cada conselho tem sua questão. Às vezes é estrutura, equipe ou falta de conhecimento. No sistema socioeducativo, o preenchimento é obrigatório por lei. Para fortalecimento do programa, o usuário tem de ser provocado.

Por isso, o governo federal afirma que lançará em 10 de janeiro, data da posse dos novos conselheiros, um Sipia mais simples e veloz.

– Será aberto em qualquer celular, e estamos estudando o envio de ofícios ao MP e ao Judiciário por meio do sistema, com a assinatura digital dos conselheiros. Isso diminuirá a burocracia, será sustentável e dará agilidade ao atendimento das crianças – explica Marcelo Nascimento, coordenador-geral da Política de Fortalecimento de Conselhos da SDH.


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - É preciso reconhecer que os conselheiros tutelares de POA estão fazendo um bom trabalho na medida que não se vê mais crianças nas sinaleiras e nas ruas como antes. É um ponto positivo. Mas, na minha opinião, esta área deveria ser profissionalizada, com pessoas instruídas e especializadas na área de crianças e adolescentes, num departamento vinculado ao sistema de justiça de menores com conselheiros eleitos pelo povo para atuar nas ruas e servidores públicos para controlar, monitorar, executar as políticas, fiscalizar, propor legislação e planejar as estratégias, objetivos e metas.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

JUSTIÇA ORDENA ABERTURA DE VAGAS EM ABRIGOS



ZERO HORA 07 de agosto de 2015 | N° 18250


PORTO ALEGRE. Justiça ordena abertura de 200 vagas em abrigos



Decisão liminar do juiz Carlos Francisco Gross prevê que o município de Porto Alegre inclua no orçamento de 2016 a previsão de abertura de 200 vagas em abrigos. A ordem é contundente ao registrar problemas graves nas casas que deveriam proteger crianças e adolescentes em situação de risco.

Nas edições de 26 e 27 de julho, Zero Hora publicou reportagem especial mostrando falhas, carências, falta de comunicação na rede de proteção e casos graves de abusos e maus-tratos.

Depois da publicação, em debate no programa Conversas Cruzadas, da TVCom, representantes do município e do governo do Estado amenizaram os problemas apresentados na reportagem. O juiz deixou claro na decisão que eles existem e não podem mais ser tratados sem a devida prioridade.

“Em audiência concentrada que realizei ainda neste mês, no abrigo AR 9, chovia copiosamente em um dos quartos, sobre um berço que seria ocupado já não estivesse o bebê dormindo na cama de outra abrigada”, registrou o magistrado.

Em outro trecho, Gross cobrou: “Porto Alegre se orgulha de seu orçamento participativo desde 1989, mas a indagação que não pode faltar é se foi dada voz aos abrigados, mudos cidadãos submetidos ao descaso estatal.”

A ação ajuizada em dezembro pela promotora Cinara Vianna Dutra Braga contra o município e a Fasc reuniu relatórios sobre as condições das casas e pediu ampliação de vagas.

O juiz determinou que o município inclua na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2016 projeto para criação e manutenção de 200 vagas, sob pena de bloqueio de valores que garanta a implementação da política social. Também decidiu que a prefeitura deve apresentar em 180 dias o cronograma de execução de obras ou convênio tendentes a abertura das vagas.

A Fasc informou ainda não ter sido notificada da decisão e que, no momento oportuno, vai avaliar a providência cabível em relação à determinação da Justiça.

ADRIANA IRION | adriana.irion@zerohora.com.br

quarta-feira, 29 de julho de 2015

OS 25 ANOS DO ECA, POR QUE POUCOS AVANÇOS?


JORNAL DO COMÉRCIO 29/07/2015 



Rosane Villanova



O Estatuto da Criança do Adolescente – também conhecido como ECA – Lei nº 8.069/90, completou 25 anos em 13/07/2015. Esta lei prevê deveres para pais, sociedade e Estado, a fim de garantir às crianças e adolescentes, seres em desenvolvimento, as condições necessárias para tornarem-se cidadãos de bem.

O ECA determina direitos como educação, saúde, lazer e outros, com o fim de facilitar à população infanto-juvenil o acesso ao desenvolvimento pleno (físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade). Os pais têm o dever de educar e proteger, e respondem por negligências e maus tratos. A sociedade tem o dever de zelar, denunciando – ao Conselho Tutelar – suspeitas de ameaças e violações de direitos, da mesma forma os profissionais da saúde e educadores, todos devem ser os olhos e a voz das crianças e dos adolescentes. Há, também, o devido regramento do processo de adoção, viagens ao exterior e trabalho infantil, coibindo explorações. O Estado é um dos violadores de direitos, não fosse assim, todos teriam acesso à escola, ao pediatra, ao dentista e a uma vida digna. Ao contrário, há uma legião de desprotegidos, muito embora um estatuto tão ricamente carregado de direitos (e poucos deveres, será?). Avanço? Sim, mas singelo. Prova disto é o Conselho Tutelar, órgão de proteção à criança e ao adolescente: pesquisas mostram o quanto estão desaparelhados, muitos com estrutura precária. Os Conselhos Municipais de Direitos, quando operantes de fato, passam pelas maiores dificuldades. Apenas 100 cidades do Estado usarão urnas eletrônicas nas eleições do Conselho Tutelar.
Perguntas que não podem calar: a) como fica a transparência do processo de escolha dos guardiões dos direitos das crianças e adolescentes nos demais 397 municípios, sem urnas eletrônicas?; b) há interesse real por parte do Estado em aparelhar um Conselho Tutelar e o Conselho de Direitos, que vão cobrar dele uma gama de direitos?; c) estamos garantindo direitos e o desenvolvimento das crianças e adolescentes, ou brincando de protegê-los?; d) melhor reduzir a maioridade penal e tirar esta “corja” do nosso convívio ou garantir direitos?; e) você sabe o que é o Conselho Tutelar e participará do processo de escolha?; f) por fim, quais crianças são o futuro da humanidade: apenas os nossos filhos?

Vice-presidente do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de Guaíba/RS

ACOLHIMENTO DESPROTETIVO



ZERO HORA 29 de julho de 2015 | N° 18241


JOSÉ CARLOS STURZA DE MORAES*



Neste ano, em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 25 anos, comemoramos a redução da mortalidade infantil e o expressivo aumento do ingresso de crianças no Ensino Fundamental. Mas existem desafios que ainda nos dizem da distância entre o anúncio de direitos e seu gozo efetivo. Nesse sentido, as reportagens de Zero Hora (vítimas de abrigos) socializam uma das mais antigas chagas do sistema protetivo: o atendimento às crianças e adolescentes retirados de suas famílias de origem. Esses “filhos do Estado”, apesar dos esforços de muitos técnicos e cuidadores, são expostos a inúmeros maus-tratos, os quais já foram exaustivamente relatados e construídos procedimentos que deveriam garantir proteção e cuidado dignos

O enfrentamento a situações como as trazidas pelas matérias, tanto em instituições públicas quanto privadas, foi um dos motivadores do próprio texto estatutário. Desde então, com a atuação de Conselhos de Direitos e Tutelares, reduzimos o número de acolhidos. Das quase 100 mil crianças e adolescentes em acolhimento na década de 1990, temos hoje cerca de 30 mil. Mas essa redução não garante proteção àqueles que estão acolhidos. Os prazos e outros procedimentos previstos no Estatuto não têm sido respeitados por instituições, Ministério Público e Poder Judiciário. Sendo este último o poder que menos investe em estruturas técnicas de assessoria e fiscalização, não garantindo o mandamento constitucional de absoluta prioridade que cabe ao segmento criança e adolescente.

São frequentes as situações relatadas ao Poder Judiciário e Ministério Público e que não têm retorno às equipes das instituições de acolhimento e outros serviços das redes de proteção. Tanto no RS quanto em outros Estados se convive ainda com sistemas que separam irmãos, por sexo e idade, penalizando com a quebra de vínculos e fragilizando a mútua proteção.

Tanto os Conselhos de Direitos quanto as demais agências protetivas precisam efetivar os procedimentos contidos nas leis, assim como gestores e mantenedores de serviços necessitam dar suporte para que o acolhimento institucional e o acolhimento familiar sejam, efetivamente, protetivos.

Cientista social, conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda)*