sexta-feira, 18 de abril de 2014

A PRIMEIRA VEZ

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Dinamárcia Maciel de Oliveira, Promotora de Justiça de Três Passos.



Em meio ao assédio da imprensa e lutando contra as energias nefastas dos juízes sem toga (todos avessos à leitura e que jurisdicionam como déspotas ocultos nas redes sociais), colhi, então, alguns minutos para reflexão sobre a triste experiência que estou vivendo nestes dias.

É de conhecimento geral que um menino de Três Passos, com 11 anos de idade, foi morto, brutalmente, sendo atuais suspeitos da autoria do crime, então, o próprio pai da criança, a madrasta e uma amiga do casal.

A notícia acerca da negligência afetiva imposta ao menino Bernardo veio verbalizada ao Ministério Público no final de uma reunião, realizada em meados de novembro, com a Rede de Proteção à Infância e Juventude local. Pedi, na ocasião, pronto relatório do caso, para tomada de providências.

Em 29 de novembro, então, o relatório chegou na Promotoria de Justiça de Três Passos e se transformou em um documento chamado “Recebimento Diverso (RD)”. Daí, então, outros relatórios vieram, até 06 de dezembro, quando, após localização da avó materna da criança, em Santa Maria, foi instaurado um “Procedimento Administrativo (PA)”.

As narrativas diziam respeito, em suma, ao pai, médico absorvido pelo trabalho e nada interessado pelo filho, e à madrasta, enfermeira, intolerante, que discutia com o enteado com alguma frequência.

Quando a Carta Precatória, para a tomada das declarações da avó, em Santa Maria, já estava nos Correios, Bernardo, no dia 24 de janeiro, chegou nesta Promotoria de Justiça, trazido pelo Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDEDICA) e pelo Juiz de Direito, para pedir providências e uma “nova família”. Um menino articulado e amoroso.

O fato é que nós já acompanhávamos a vida de Bernardo, com as informações disponíveis, faltando apenas ouvir o menino e, talvez, o pai e a madrasta – providência que precisava ser muito bem avaliada para evitar que o menino fosse pressionado, em casa, para adotar outra postura perante o Ministério Público e negar os fatos até então apurados.

Bernardo foi acolhido por mim, tal como faço relativamente a toda e qualquer criança ou adolescente atendido, e logo passou a confirmar as informações, dizendo que havia uma nova família, eleita por ele, com a qual gostaria de conviver. Eu o questionei sobre a avó, e ele considerou que isso seria, sim, uma possibilidade. Perguntei, então, mais de uma vez, se ele sofria maus tratos físicos, se o pai era violento e se a madrasta era agressiva. E a resposta foi sempre negativa, para todas as indagações, e com visível tranquilidade. Ele disse que buscava, apenas, um lar com amor. Segurei o choro.

Levei Bernardo até a porta da Promotoria de Justiça, questionei sobre onde iria e ele me disse: para a casa de um amigo, morador a pouco mais de 200 metros dali. Um beijo na face, um abraço e um “tchau”. Fui cativada pela ternura do pequeno.

A Carta Precatória veio no dia 27 de janeiro, mesma data em que busquei contato com a família sugerida pela criança, para verificar a possibilidade de guarda provisória. Recebi um peremptório “não”, porque, conforme disseram, “não queremos nos incomodar com o pai de Bernardo, que é nosso amigo”.

Então, em 31 de janeiro, e mesmo estando a atender, também, a Promotoria de Justiça de Tenente Portela e o 2º cargo de Promotor de Justiça de Santo Augusto, ajuizei uma Ação Protetiva em favor dos direitos do Bernardo a ter uma saudável convivência familiar e postulando ao Juízo o encaminhamento da criança à guarda provisória da avó materna, caso a reconstrução do vínculo afetivo com o pai não fosse inicialmente viável.

Realizou-se a audiência em 11 de fevereiro, com a presença de Bernardo, do pai e da advogada deste, além do Juiz e do Ministério Público. O Juízo entendera por bem não chamar a avó materna, para poder avaliar a interação entre pai e filho sem interferências, na longa conversa que tivemos, separadamente e, depois, em conjunto, com os dois.

O pai pediu uma chance de demonstrar que poderia ser melhor e mais presente, alegando que nada havia contra sua conduta social, que era um médico respeitado em Três Passos e podia proporcionar uma vida feliz a Bernardo. Foi advertido sobre a necessidade de orientar sua companheira, para manter um melhor convívio com o menino. Este, por sua vez, sentado perto de mim, disse ao Juiz que poderia, sim, dar a oportunidade que o pai lhe havia pedido. Pediu um animalzinho de estimação e mais tempo com o pai, sem a madrasta. Pedidos deferidos e reencontro marcado para o dia 13 de maio, às 11h. Pai e filho saíram juntos da sala de audiência.

Sem que nenhuma notícia da Rede de Proteção viesse em abalo a essa oportunidade de restabelecimento de vínculo afetivo entre pai e filho, e nenhum cidadão ou cidadã comunicasse qualquer fato novo envolvendo a família de Bernardo, o pequeno foi visto pela última vez, com vida, no dia 04 de abril.

Desaparecido, então, meu pequeno e mais recente amigo, pedi ao Juiz, nos autos, que, caso encontrado com vida, Bernardo fosse imediatamente encaminhado à avó materna, visto que o pai continuaria a expor evidente negligência, sem saber onde e com quem o filho estava. Pedido deferido.

Mas, o corpo do pequeno foi encontrado dia 14 de abril, sem vida, enterrado em pé, no mato, às margens de um rio, em Frederico Westphalen. Pai, madrasta e uma amiga do casal, Assistente Social, presos no mesmo dia, temporariamente.

Comunidade indignada e eu, particularmente, devastada. Em 15 anos de Ministério Público, estava diante, pela primeira vez, de um homicídio praticado contra uma criança atendida por mim. Quanta consciência da impotência diante do imprevisível, adquirida abruptamente e da pior forma.

As lágrimas de todos ainda não cessaram. O silêncio do luto é perceptível em uma simples caminhada pela cidade. As críticas rompem essa barreira e vêm, a todo instante, e até mesmo no balcão da Promotoria de Justiça, cada qual dando o seu recado sobre a “absurda falta de atenção que foi dada ao menino, cuja Justiça, em Três Passos, não amparou”.

Mas, do nosso jeito, para quem veio da fronteira gaúcha e tem o “pelo duro”, é difícil tombar diante da adversidade, muito menos diante da injustiça da crítica. Vamos, pela alquimia do pensamento, transformando a energia da ignorância e do ódio, a nós enviada, agora, em nova força, mas positiva, para lutarmos pela condenação dos culpados e pela conscientização da sociedade sobre o dever comum de proteção às nossas crianças e adolescentes.





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