HUMBERTO TREZZI
O assassinato do menino, que teria sido cometido com injeção de analgésicos, chocou o país, revoltou a comunidade, mas não se pode negar a existência de sinais da tumultuada relação do casal Boldrini com Bernardo. Ele era ignorado pelo pai e odiado pela madrasta, repetem pelo menos 10 moradores de Três Passos que privavam da intimidade do casal, ouvidos por Zero Hora.
Andréia Oliveira Küntzell, que via Bernardo pelo menos três vezes por semana, é uma das que não se espantam com o desfecho macabro do caso, embora esteja horrorizada. Ela diz que Kelly (como os íntimos chamavam Graciele, a madrasta de Bernardo) detestava o menino.
As duas trabalharam juntas por quatro anos, na rede municipal de saúde de Três Passos, até Kelly migrar para a clínica de endoscopia na qual se associou com o marido, o cirurgião Boldrini.
Andréia lembra que Graciele levou a bebê dela, Maria Valentina (meia-irmã de Bernardo), para vacinar, meses atrás, e as queixas contra o guri foram infindáveis. “Aquele demônio! Aquilo não vale nada, passa me incomodando. Tem uma cara para o pai e outra, a verdadeira, para mim”, teria se queixado Graciele.
As brigas eram tantas que, admitiu Graciele, Bernardo estava impedido de ver a irmã e de ter chave própria da casa. Andréia, desconcertada, tentou dar uma ajuda. Levava o menino para jantar pelo menos três vezes por semana, com a filha Maria Eduarda. Ela estranha que o pai de Bernardo não telefonava para ver se as coisas estavam bem:
– Era um excelente cirurgião, afável, mas parecia não ligar para o destino do guri.
O espanto de Andréia se transformou em revolta quando, em dezembro passado, nem Graciele nem o próprio Boldrini compareceram à cerimônia de primeira comunhão de Bernardo. A decepção foi enorme também para a outra “mãe postiça” do menino, a técnica em enfermagem Nelda Maria, a Bugra, que chegou a chorar ao perceber o peso da ausência do médico e da madrasta. Católica arraigada, tinha convencido a criança a frequentar missas. Foi com imensa felicidade que viu o menino se transformar em um destacado coroinha, sempre a auxiliar os padres e as freiras.
– Era o menino do sorriso triste – define a técnica em enfermagem.
Bugra e o filho Alex, 17 anos – monitor no Colégio Ipiranga, onde Bernardo cursava a 6ª série –, ajudavam também o menino a aprender português. Ativo, irrequieto, Bê (apelido do menino) tinha dificuldade em se concentrar.
– Qualquer coisa tirava a atenção dele. Era ansioso, mas um guri meigo – define Maria Eduarda Küntzell, colega e melhor amiga, com a sinceridade dos seus 11 anos.
Eduarda ressalta que Bê preferia ficar mais entre as meninas do que entre os meninos porque era ridicularizado por ser atrapalhado. No futebol, tinha pouco domínio e costumava perder para a bola. No vôlei, levava boladas, e muitos riam da situação. Com as meninas, ele debatia filmes, algum programa de TV.
Entre os sonhos, ir com o pai à Arena
Mesmo sem ligar muito para futebol, o gremista Bernardo confidenciava a amigos um sonho: que o pai o levasse a ver um jogo na Arena do Grêmio. Mas isso nunca aconteceu. O pai, um workaholic assumido, nunca tinha tempo para o filho. Sequer para a primeira comunhão. Boldrini e Graciele viajaram, e Bernardo foi socorrido emocionalmente pelas “tias” Andréia e Bugra e pelo casal de empresários José e Juçara Petry – outros a quem o menino tinha rogado para que o adotassem.
Os Petry chegaram a ficar com Bernardo por um mês, quando o pai do menino sofreu um acidente de moto. Nos últimos meses, Bernardo confidenciara a eles estar feliz com a promessa, feita por Boldrini, de lhe dar mais atenção e de, finalmente, poder brincar com a irmãzinha – algo que estava proibido de fazer, pela madrasta.
A promessa de Boldrini fora feita ao filho por meio de pressão judicial. Em audiência mediada pelo Ministério Público, o menino se queixara de indiferença e desamor do pai. E chegou a apontar duas famílias com as quais queria morar: os Petry ou os Küntzell. Uma situação constrangedora para essas pessoas, já que eram conhecidos do pai e da madrasta de Bernardo (até colegas, no caso de Andréia Küntzell).
Para alívio geral, o próprio menino desistiu, ao ouvir do pai promessas de melhora na relação, feitas diante da promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira.
A promotora pediu um estudo social de caso, para verificar o que ocorria na família Boldrini. Na análise, Bernardo é descrito como um menino emocionalmente carente, com “pai desatencioso e madrasta intolerante”. É considerado “um caso típico de negligência afetiva”. Em nenhum momento, porém, são mencionadas agressões físicas, tão típicas de casos escabrosos que costumam chegar ao Ministério Público.
O laudo, de cinco páginas, é assinado pela assistente social Juliana Kaufmann de Quadros e pela psicóloga Raquel Raffaeli. A promotora considera que não existiam abusos físicos contra Bernardo.
Talvez existissem. Dinamárcia afirmou à imprensa que nunca recebera notícias de agressões físicas contra Bernardo, mas, na realidade, fora alertada sobre episódios assim. A advertência partira do advogado Marlon Balbon Taborda, que representa a família materna do menino – brigada com o pai dele.
Por e-mail, Taborda copiou denúncia feita por Eliane Raber, ex-babá de Bernardo, em 2012. A mulher informa que Bernardo se queixou de ter recebido uma surra “de vassoura” da madrasta e que Graciele tinha tentado asfixiá-lo enquanto dormia. A ex-babá também se disse surpresa por encontrar, seguidas vezes, o menino sujo, mal vestido e abandonado pelas ruas de Três Passos.
Esse informe foi passado ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público, que marcou audiência com familiares de Bernardo. A babá nunca foi ouvida. A promotora Dinamárcia nega descaso com a situação do menino:
– Recebo, por dia, três denúncias de maus-tratos ou crimes envolvendo crianças, como vítimas ou autores. No mês em que Bernardo apareceu aqui, tive dois latrocínios com gargantas cortadas, praticados por adolescentes, e uma menina abusada sexualmente. Já no caso do Bernardo, não havia risco iminente, por isso o juiz aceitou a palavra do pai dele, de que tudo mudaria para melhor.
CASO BERNARDO
O assassinato do menino, que teria sido cometido com injeção de analgésicos, chocou o país, revoltou a comunidade, mas não se pode negar a existência de sinais da tumultuada relação do casal Boldrini com Bernardo. Ele era ignorado pelo pai e odiado pela madrasta, repetem pelo menos 10 moradores de Três Passos que privavam da intimidade do casal, ouvidos por Zero Hora.
Andréia Oliveira Küntzell, que via Bernardo pelo menos três vezes por semana, é uma das que não se espantam com o desfecho macabro do caso, embora esteja horrorizada. Ela diz que Kelly (como os íntimos chamavam Graciele, a madrasta de Bernardo) detestava o menino.
As duas trabalharam juntas por quatro anos, na rede municipal de saúde de Três Passos, até Kelly migrar para a clínica de endoscopia na qual se associou com o marido, o cirurgião Boldrini.
Andréia lembra que Graciele levou a bebê dela, Maria Valentina (meia-irmã de Bernardo), para vacinar, meses atrás, e as queixas contra o guri foram infindáveis. “Aquele demônio! Aquilo não vale nada, passa me incomodando. Tem uma cara para o pai e outra, a verdadeira, para mim”, teria se queixado Graciele.
As brigas eram tantas que, admitiu Graciele, Bernardo estava impedido de ver a irmã e de ter chave própria da casa. Andréia, desconcertada, tentou dar uma ajuda. Levava o menino para jantar pelo menos três vezes por semana, com a filha Maria Eduarda. Ela estranha que o pai de Bernardo não telefonava para ver se as coisas estavam bem:
– Era um excelente cirurgião, afável, mas parecia não ligar para o destino do guri.
O espanto de Andréia se transformou em revolta quando, em dezembro passado, nem Graciele nem o próprio Boldrini compareceram à cerimônia de primeira comunhão de Bernardo. A decepção foi enorme também para a outra “mãe postiça” do menino, a técnica em enfermagem Nelda Maria, a Bugra, que chegou a chorar ao perceber o peso da ausência do médico e da madrasta. Católica arraigada, tinha convencido a criança a frequentar missas. Foi com imensa felicidade que viu o menino se transformar em um destacado coroinha, sempre a auxiliar os padres e as freiras.
– Era o menino do sorriso triste – define a técnica em enfermagem.
Bugra e o filho Alex, 17 anos – monitor no Colégio Ipiranga, onde Bernardo cursava a 6ª série –, ajudavam também o menino a aprender português. Ativo, irrequieto, Bê (apelido do menino) tinha dificuldade em se concentrar.
– Qualquer coisa tirava a atenção dele. Era ansioso, mas um guri meigo – define Maria Eduarda Küntzell, colega e melhor amiga, com a sinceridade dos seus 11 anos.
Eduarda ressalta que Bê preferia ficar mais entre as meninas do que entre os meninos porque era ridicularizado por ser atrapalhado. No futebol, tinha pouco domínio e costumava perder para a bola. No vôlei, levava boladas, e muitos riam da situação. Com as meninas, ele debatia filmes, algum programa de TV.
Entre os sonhos, ir com o pai à Arena
Mesmo sem ligar muito para futebol, o gremista Bernardo confidenciava a amigos um sonho: que o pai o levasse a ver um jogo na Arena do Grêmio. Mas isso nunca aconteceu. O pai, um workaholic assumido, nunca tinha tempo para o filho. Sequer para a primeira comunhão. Boldrini e Graciele viajaram, e Bernardo foi socorrido emocionalmente pelas “tias” Andréia e Bugra e pelo casal de empresários José e Juçara Petry – outros a quem o menino tinha rogado para que o adotassem.
Os Petry chegaram a ficar com Bernardo por um mês, quando o pai do menino sofreu um acidente de moto. Nos últimos meses, Bernardo confidenciara a eles estar feliz com a promessa, feita por Boldrini, de lhe dar mais atenção e de, finalmente, poder brincar com a irmãzinha – algo que estava proibido de fazer, pela madrasta.
A promessa de Boldrini fora feita ao filho por meio de pressão judicial. Em audiência mediada pelo Ministério Público, o menino se queixara de indiferença e desamor do pai. E chegou a apontar duas famílias com as quais queria morar: os Petry ou os Küntzell. Uma situação constrangedora para essas pessoas, já que eram conhecidos do pai e da madrasta de Bernardo (até colegas, no caso de Andréia Küntzell).
Para alívio geral, o próprio menino desistiu, ao ouvir do pai promessas de melhora na relação, feitas diante da promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira.
A promotora pediu um estudo social de caso, para verificar o que ocorria na família Boldrini. Na análise, Bernardo é descrito como um menino emocionalmente carente, com “pai desatencioso e madrasta intolerante”. É considerado “um caso típico de negligência afetiva”. Em nenhum momento, porém, são mencionadas agressões físicas, tão típicas de casos escabrosos que costumam chegar ao Ministério Público.
O laudo, de cinco páginas, é assinado pela assistente social Juliana Kaufmann de Quadros e pela psicóloga Raquel Raffaeli. A promotora considera que não existiam abusos físicos contra Bernardo.
Talvez existissem. Dinamárcia afirmou à imprensa que nunca recebera notícias de agressões físicas contra Bernardo, mas, na realidade, fora alertada sobre episódios assim. A advertência partira do advogado Marlon Balbon Taborda, que representa a família materna do menino – brigada com o pai dele.
Por e-mail, Taborda copiou denúncia feita por Eliane Raber, ex-babá de Bernardo, em 2012. A mulher informa que Bernardo se queixou de ter recebido uma surra “de vassoura” da madrasta e que Graciele tinha tentado asfixiá-lo enquanto dormia. A ex-babá também se disse surpresa por encontrar, seguidas vezes, o menino sujo, mal vestido e abandonado pelas ruas de Três Passos.
Esse informe foi passado ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público, que marcou audiência com familiares de Bernardo. A babá nunca foi ouvida. A promotora Dinamárcia nega descaso com a situação do menino:
– Recebo, por dia, três denúncias de maus-tratos ou crimes envolvendo crianças, como vítimas ou autores. No mês em que Bernardo apareceu aqui, tive dois latrocínios com gargantas cortadas, praticados por adolescentes, e uma menina abusada sexualmente. Já no caso do Bernardo, não havia risco iminente, por isso o juiz aceitou a palavra do pai dele, de que tudo mudaria para melhor.
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