ZERO HORA 26 de julho de 2015 | N° 18238
ADRIANA IRION
Entre hoje e segunda-feira, Zero Hora retrata o descaso a que estão submetidas crianças e adolescentes que vivem em muitos dos abrigos de Porto Alegre. São jovens que, por lei, deveriam receber cuidados especiais, ser prioridade do poder público. Mas abandono, desorganização e burocracia tornam a rede de proteção falha
O joão-de-barro encanta pelos ninhos que espalha nas cidades. São moradias tão perfeitas, que, quando desabitadas, chegam a ser cobiçadas para virar enfeites residenciais. Na contramão do que a denominação deveria significar, a casa que leva o nome do pássaro, situada na zona sul de Porto Alegre, é sinônimo de desleixo, desamor, desproteção. Tudo isso em relação àqueles que, por lei, deveriam ser a prioridade absoluta dos cuidados do poder público: crianças e adolescentes.
A informação é básica, mas não custa lembrar que, quando chegam ao João-de-Barro, ao Quero-Quero ou a qualquer outro abrigo público, essas crianças e adolescentes já estiveram em situação de risco, de violência, de abusos e carências variados na própria família. São arrancados de lares duvidosos para receberem, enfim, a proteção que está sacramentada em lei – não só na Constituição Federal, mas também no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 25 anos este mês.
O que se vê, no entanto, pelo olhar de autoridades que mergulharam nesses locais nos últimos dias, meses e anos, é que as casas dos sonhos, servindo como um lar de verdade, só existem no papel. Nas normas que tratam da proteção à infância tudo funciona tão bem que o abrigo João-de-Barro (JB) até poderia encantar como o ninho do pássaro. Mas é lúgubre, feio, escuro, úmido, sujo, desorganizado, cheira mal. É triste. Numa ensolarada e fria manhã de abril, por volta das 11h, a maior parte dos jovens que estão na casa dorme em quartos fétidos. Roupas se espalham pelo banheiro imundo. Três adolescentes fazem de conta que jogam numa velha mesa de fla-flu, diante de uma despencada estante de madeira, semiquebrada e de portas abertas. Vazia. Sem livros, sem jogos. A TV berra algum programa matinal para nenhum espectador. O chão coberto de pó é forte aliado do abandono e do desleixo. A impressão só piora em direção aos fundos do imóvel.
Um banheiro está interditado há meses. O refeitório, um dos ambientes que deveriam servir para estreitar laços de quem ali reside, é pálido, com mesa e paredes brancas. Não há nada acolhedor. O pátio amplo, com piscina e árvores, mais parece um cenário de guerra, com roupas e pedaços de colchões espalhados. Há lixo. Nenhum atrativo de lazer. A piscina está imunda como sempre esteve em inspeções anteriores. Ao ver autoridades, funcionários correm a pegar vassouras. Trabalham rápido na tentativa de recuperar o irrecuperável. A constatação é óbvia: só há limpeza quando alguém fiscaliza. E como fica quem vive ali?
A empresa contratada para fazer a limpeza dos abrigos – e serviço de enfermagem – deve receber, em 2015, R$ 4,8 milhões da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). A propósito: essa empresa é a mesma que limpa prédios da Justiça. Alguém lembra de esbarrar em lixo ou de usar banheiros fétidos nos fóruns ou nos tribunais?
Ao fundo do pátio, uma simplória inscrição no muro faz lembrar que se está no João-de-Barro, uma casa especial criada em 2008 para melhorar o atendimento de uma parcela de jovens mais problemática. O nome está lá no muro, gravado a tinta. Desconectado do seu real significado, parece ser só o que restou de um projeto de remodelação de abrigos badalado pela prefeitura a partir de 2007, batizado de Figueira. Foi dele que nasceram o João-de-Barro, o Quero-Quero e os Sabiás, as casas com nomes de aves. Mais inspirador, impossível.
Quando o reordenamento da rede de abrigos de Porto Alegre foi pensado, o JB era uma das meninas dos olhos: “(...) propomos o estabelecimento de um Projeto Piloto de uma Casa de Passagem (Casa João de Barro) para adolescentes visando proporcionar a última e talvez derradeira oportunidade que muitos dos adolescentes que ingressam na rede de abrigagem terão de poder usufruir um ambiente suficientemente bom, pois os sintomas antissociais são como que uma busca, às apalpadelas, por um ambiente sadio”, diz trecho de documento da Fasc que trata do reordenamento da rede de acolhimento. Outra parte cita ensinamentos de Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês: “É necessário no tratamento de crianças e adolescentes despossuídos da vida familiar, entre outros fatores, o fornecimento de um ambiente que transmita esperança”.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - "Uma nação sem justiça é uma nação perdida" alertavam os antigos mestres chineses. "Uma nação que não protege suas crianças não merece ser chamada de nação" digo eu. É uma vergonha um país enorme e rico como o nosso não ter um sistema de proteção das crianças e adolescentes em situação de risco. O que temos são planos, ações e decisões isoladas, corporativas, sem continuidade e sem compromisso com a finalidade pública, e sem soluções já que caem no esquecimento e na omissão em punir o descaso, a irresponsabilidade, a negligência, a improbidade, a omissão e as graves e impunes violações de direitos humanos. parece haver uma conivência entre os Poderes e órgãos "competentes" que aceitam o estado de "abandono, desorganização e burocracia", pois as únicas soluções que encontram é interditar e fugir das obrigações, sem apurar responsabilidade e punir que está falhando, doa a quem doer.
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