ZERO HORA 27 de julho de 2015 | N° 18239.
FERNANDA DA COSTA
VITIMAS DE ABRIGOS.
Agressões são relatadas por acolhidos em 10 procedimentos que investigam maus-tratos na Promotoria da Infância. Uma criança disse que um educador “arrastou sua cara no chão” e duas adolescentes afirmaram terem sido imobilizadas “com o pé no pescoço”. Essas garotas ainda narraram ter tido as veias pressionadas até perderem as forças – técnica que, segundo a investigação, é usada em artes marciais para provocar desmaios nos adversários.
João*, 11 anos, disse que foi jogado contra a parede por um educador e que o irmão, de apenas quatro anos, levou um “tapa na boca” de uma funcionária, “saindo sangue”.
– A educadora (...) também maltrata os acolhidos, sentando eles no chão, abrindo as suas pernas, esticando os braços para cima e colocando o joelho em suas costas – relatou João.
Em outros depoimentos, abrigados dizem ter presenciado uma menina de nove anos sendo “contida” pelo pescoço e um menino deixado “no chão com as mãos para trás”. Há relatos também de um educador que castigaria uma criança com deficiência e um menino de quatro, os deixando em cima de um armário, e de uma funcionária que privaria acolhidos do almoço.
– É comum, no turno da noite, as agentes educadoras (...) deixarem os acolhidos menores em pé na cozinha por cinco horas contínuas, sendo que eles estudam de manhã – contou Joana*, 15 anos, ao MP, referindo-se a crianças de 10 e 11 anos.
Os suspeitos de maus-tratos representam 3,8% do total de funcionários dos abrigos, e um educador ouvido pela reportagem alerta que há denúncias inverídicas.
– Tivemos um caso em que a criança relatou que foi jogada na parede, mas o educador provou que, na verdade, a segurou junto à parede, para que não agredisse outro acolhido. Se seguramos, passamos por agressores, mas se não seguramos, passamos por negligentes, por não evitar que um batesse no outro – afirma o profissional, que preferiu não ter o nome divulgado.
Conforme a promotora da Infância e da Juventude Cinara Vianna Dutra Braga, de 5 de março de 2014 até 3 de julho de 2015, o MP concluiu 59 investigações, 32 delas (54%) com irregularidades constatadas:
– O índice mostra que a forma de contratação e capacitação dos servidores precisa ser revista. É inadmissível que quem é obrigado a cuidar, negligencie.
Os suspeitos podem responder pelo crime de maus-tratos e omissão, cuja pena é de até quatro anos de prisão quando há lesão corporal grave, fora agravantes. Agressores, diretores das casas e mantenedoras também estão sujeitos a pagar indenização às vítimas.
Eles devem ser tratados como ‘bichos’, diz educador
Procedimentos que apuram maus-tratos também envolvem casos de assédio moral. Acolhidos relatam que são “tratados de maneira desrespeitosa e grosseira, mediante gritos e ameaças”. Algumas vezes, também são alvo de deboche e humilhação. Um educador teria dito aos acolhidos que todos “deveriam ser tratados como bichos”, outro chamado meninos de “boiolas” e outros cometido bullying com uma adolescente com sobrepeso, dizendo-lhe que ela irá “explodir”.
– Guri, só fala comigo quando parar de babar – teria dito um funcionário a um acolhido com deficiência.
A professora de Psicologia da PUCRS Samantha Dubugras Sá afirma que a violência psicológica afeta gravemente a autoestima, e as vítimas podem reproduzir esse comportamento com os mais novos.
– Esse tipo de assédio funciona como se fosse um bloqueador de afeto. A pessoa sofre psicologicamente e vai endurecendo até que o resquício de afeto que poderia haver acaba sumindo – explica.
A punição para os responsáveis pelos danos morais, caso confirmados, vai do afastamento à responsabilização criminal.
Num universo de 104 casas, três bons exemplos
A grande maioria dos profissionais que atua nos abrigos (96%) não está envolvida nas investigações de irregularidades, e alguns são elogiados ao Ministério Público. Conforme o MP, há abrigos que são referência em atendimento e estrutura física, como a Casa do Excepcional Santa Rita de Cássia, que atende crianças com lesões cerebrais e é mantida por uma organização não-governamental, a SOS – Casas de Acolhida, destinada a crianças de zero a seis anos, e o Lar da Criança e do Adolescente Menino Jesus (Larcamje), ambas mantidas por entidades de assistência social em parceria com a prefeitura.
Há 20 anos em funcionamento em Porto Alegre, a SOS – Casas de Acolhida atende atualmente 25 crianças e tem o mesmo número de funcionários. A seleção dos educadores é feita em três etapas: análise de currículo (é preciso ter experiência na área, Ensino Médio completo e preferencialmente curso de educador social), entrevistas com duas psicólogas e a coordenadora, e período de teste.
– Nenhuma criança vem com manual. O segredo (do bom atendimento) está na capacitação – afirma Suzana Valente, coordenadora da casa.
Depois de contratados, os funcionários passam por capacitação sobre a metodologia da casa, baseada na teoria da pediatra húngara Emmi Pikler, em que o adulto deve estabelecer uma relação de confiança e interação com crianças desde que são bebês.
Casas de Acolhida e Casa do Excepcional Santa Rita de Cássia são modelos de boa gestão
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