sábado, 11 de julho de 2015

PROIBIDAS DE SEREM MULHERES

REVISTA ISTO É N° Edição: 2380 | 10.Jul.15


O primeiro retrato já feito no País sobre as adolescentes presas revela que, no dia a dia, elas são privadas de usufruir de itens ligados à feminilidade, como maquiagem, e até de absorventes higiênicos. Têm menos visitas íntimas e são mais abandonadas

Fabíola Perez



Distraída com um pedaço de tecido e uma agulha nas mãos, S. B., 17 anos, borda seu nome enquanto espera o dia passar. Sentada nas escadas que levam à quadra de esportes da unidade socioeducativa Chiquinha Gonzaga, em São Paulo, a menina de riso fácil está presa há oito meses por roubo e tráfico de drogas. O corpo magro e miúdo se esconde atrás do moletom azul marinho. S. é uma das poucas internas que usa o cabelo solto. Os fios cacheados levemente caídos sobre o rosto roubam um pouco de sua concentração. A jovem interrompe o bordado cada vez que se lembra como era a vida no tráfico. O silêncio e a expressão cabisbaixa, no entanto, vêm quando fala da família. “Minha mãe nunca veio me visitar.” O maior medo da garota é que seu filho, G. L. C., de um ano, não a reconheça mais. “Estou perdendo o começo da vida dele e não sei quando vou embora daqui”, diz. “Meus avós trazem ele todo domingo, mas ele não me reconhece, então entrego na mão de Deus.”


INTERNA
B.F.S., 15 anos, está há quase um ano na unidade Chiquinha Gonzaga,
em São Paulo, por roubo e tráfico de drogas. Uma de suas
formas de matar o tempo é bordar

S. é uma das 578 meninas que cumprem medida socioeducativa nas unidades de todo o País destinadas às adolescentes e que, de forma geral, compartilham a mesma realidade: por causa da absoluta falta de atenção às necessidades femininas, as garotas hoje encarceradas no Brasil são proibidas de serem mulheres e, ao mesmo tempo, recebem punições extras - não dadas aos meninos - exatamente por isso. Esta é a principal conclusão que se tira a partir da interpretação da pesquisa “Dos espaços aos direitos – A realidade da ressocialização na aplicação das medidas socioeducativas de internação das adolescentes do sexo feminino em conflito com a lei nas cinco regiões”, coordenada pela advogada Marília Montenegro Pessoa de Melo, professora da Universidade Católica de Pernambuco. Realizado nos estados de São Paulo, Pernambuco, Pará, Distrito Federal e Rio Grande do Sul, o levantamento foi encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça e é o primeiro retrato obtido no País sobre as condições da internação das jovens brasileiras. “O confinamento para as mulheres é feito em sistemas pensados a partir da lógica masculina”, afirma Marília.

O primeiro impacto deste equívoco é o sistemático ataque à feminilidade. Na maioria das unidades avaliadas, não há espelhos – caso das instalações de Pernambuco, do Pará e do Distrito Federal. No sistema prisional, esse item é proibido. Trata-se de uma questão polêmica. Há especialistas que defendem a proibição, uma vez que podem facilmente ser transformados em armas ou serem usados por elas contras elas próprias. Mas há quem sustente que isso vale para as presas adultas, e não para as adolescentes. “Essas meninas podem passar até três anos sem se ver. Isso prejudica demais a autoestima”, diz Marília. A solução seria oferecer espelhos de plásticos, como os fornecidos em São Paulo. No Rio Grande do Sul, estão sendo oferecidos espelhos de vidro.


ROTINA
Na mesma instituição, menor se encarrega da faxina enquanto cuida do filho.
É o único espaço do país destinado a abrigar mães e filhos

Faltam às meninas outros itens fundamentais para a construção de uma identidade feminina. Batons, esmaltes e perfumes só são autorizados em dias especiais, batizados de “dias da beleza”. Nas unidades nas quais elas usam uniforme, a roupa é padronizada (camiseta e calça e blusa de moletom). É igual a dos meninos. Ou seja, passa longe de um corte mais feminino. “Nada que individualize as meninas é permitido. Em vários centros, até o elástico de cabelo é igual”, critica a pesquisadora.

As conseqüências de serem privadas de algo tão importante para as mulheres – o cultivo da imagem, da vaidade – são devastadoras. “Seis meses depois, elas perdem as características femininas e vão se masculinizando”, observa a advogada. “Emagrecem, seu cabelo se deteriora e elas perdem seu lado mais emotivo.” Algumas vezes, o processo muda a orientação sexual. “É o homossexualismo temporário. Elas se envolvem com outras meninas durante a internação”, diz Berenice Gianella, presidente da Fundação Casa, de São Paulo, responsável pelas unidades destinadas às jovens no estado.



O exercício da sexualidade também sofre restrições em intensidade maior do que as impostas aos meninos. A pesquisa apontou que em nenhuma unidade as jovens estavam autorizadas a receber seus parceiros, mesmo nos casos em que a garota possuía união estável. “É uma violação à sexualidade, como se houvesse um ônus por ser mulher”, diz Marília. O direito à visita íntima – para homens e mulheres – é concedido após avaliação por um juiz e considerado parte do processo de ressocialização. “A Justiça costuma ser mais rigorosa com as meninas”, conta Gisleine Silva, assistente social da unidade Chiquinha Gonzaga.

Também praticamente não há espaço para o desfrute da maternidade. A unidade Chiquinha Gonzaga é a única que conta com um espaço físico para abrigar gestantes e mães que acabaram de dar à luz, o Programa de Acompanhamento Materno-Infantil (Pami). Lá, G. C., 15 anos, por enquanto consegue cuidar do filho nascido há cerca de quinze dias. Há sete meses no lugar, a menina não gosta de falar sobre o que a levou à unidade. Diz apenas que está arrependida. “Parei de escutar os conselhos dos meus pais, fiquei suscetível às influências dos amigos e do namorado e a partir daí minha falta de cuidado me trouxe para cá. Agora não dá para mudar o passado.”

A ausência de um olhar especial para as peculiaridades femininas chega muitas vezes ao extremo de não dar às garotas absorventes higiênicos quando estão menstruadas. É o que ocorre na unidade de Santa Maria, no Distrito Federal, que não oferece o item por falta de previsão orçamentária. A diretoria da unidade diz que tenta reverter a situação. “O básico que eles oferecem de higiene é papel higiênico, pasta, sabonete e só”, diz uma das garotas ouvidas pela pesquisa. O restante dos produtos pode ser levado por familiares.


SOLIDÃO
A palavra tatuada no braço acaba sendo uma lembrança dolorosa do abandono
do qual as meninas são vítimas. as garotas quase não recebem visitas de familiares

Ao mesmo tempo, as meninas também acabam sendo vítimas de estigmas que ainda persistem em relação às mulheres. Nas unidades destinadas aos garotos, eles não são obrigados a fazer faxina em todas as dependências das unidades. As meninas são. De acordo com o estudo, no Pará, Rio Grande do Sul e Pernambuco, as garotas relatam que fazem a limpeza em tudo, sob pena de cumprir sanções disciplinares. “Elas limpam dormitórios, salas e até as diretorias”, afirma Marília. O abandono familiar também atinge mais as jovens do que os garotos. “Elas recebem poucas visitas. Há uma decepção maior dos familiares, como se as garotas tivessem rompido com um padrão esperado de boa moça”, diz a advogada. O esquecimento também vem dos parceiros. “Os companheiros não estão dispostos a enfrentar as dificuldades impostas às visitas”, diz Berenice Gianella.

Em geral, as garotas atuam em papéis secundários no crime. De acordo com o levantamento, o tráfico de drogas é o delito mais recorrente entre os motivos que levam ao encarceramento. É o caso das menores S.B., 17 anos, e de B. F. S., de 15 anos, internadas na unidade Chiquinha Gonzaga, em São Paulo. S. está internada há oito meses. “Chegava a tirar de R$ 3 mil a R$ 4 mil toda sexta-feira no tráfico.” B. F. S. há quase um ano. “Minha mãe traficava quando eu era pequena. Eu comecei no tráfico com um amigo do meu irmão. O dinheiro vinha fácil, que nem água. Depois comecei a roubar casas e carros”, diz B. também entretida com o bordado de seu nome. Em boa parte das unidades avaliadas, pouco se oferece de novos caminhos às meninas. Sobretudo nos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, as atividades profissionalizantes são precárias e as garotas passam a maior parte do tempo sem fazer nada. “Elas costumam dizer: ‘eles não esperam de mim grande coisa. Se eu souber fazer bem uma faxina, uma unha está bom’”, relata Marília.



Fotos: João Castellano/ AG. Istoé

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