ZERO HORA 26 de julho de 2015 | N° 18238
VÍTIMAS DE ABRIGOS
É meados de dezembro de 2014 e o que mais se ouve no abrigo é: “Quero passar o Natal com minha mãe, em casa”!!!
É dia de audiência e as crianças estão eufóricas com a presença de autoridades em um abrigo mantido pela prefeitura. Usam as melhores roupas.
O primeiro caso é o de três irmãos, dois deles gêmeos.
– A família se mudou. Não conhecemos – informa um conselheiro tutelar.
O trio está abrigado há meses e a equipe ainda não tem informações sobre familiares que possam ficar com as crianças caso a mãe seja considerada incapaz para isso. Esta é uma alternativa à adoção: manter em família.
As equipes dos abrigos têm de fazer sempre a busca com ajuda da rede que está na rua, como o Conselho Tutelar. Neste caso, ninguém fizera até aquele momento.
Há problemas também com a saúde dos três. Os gêmeos esperam por atendimento psicológico sistemático. A irmã, soropositiva, precisa consulta com infectologista, além de tratamento com fisioterapia. Esperam pela rede pública de saúde.
– Toda criança abrigada a gente acredita que precisa de atendimento psicológico – lamenta um membro da equipe do abrigo.
Faltam consultas, sobra uma certeza: é claro que crianças e adolescentes vindos de situações traumáticas, de violência e negligência, necessitam de atendimento psicológico permanente. Mas não têm.
As falhas seguem na área da educação. Um dos meninos perdeu o ano escolar. A certidão de nascimento tinha sido trocada com a do irmão gêmeo. Um estava indo à aula no lugar do outro. A confusão só foi descoberta quando houve troca de abrigo, no final do ano de 2014. Tarde demais.
– Mas que medidas vocês adotam quando recebem um não (no caso, o não dado pela escola quanto à situação do aluno)? Ele perdeu o ano e pronto? Vocês são os pais, os responsáveis! – cobra a representante do Ministério Público.
– A gente controla o incêndio. Apagar já é luxo – defende-se uma integrante da equipe.
– Essas crianças continuam em situação de risco abrigadas. São retiradas de casa pela negligência dos pais. E a negligência do abrigo, o que a gente faz? – reclama a promotora.
PASSATEMPO DE CRIANÇA É TORCER GARRAFA PET
Durante a mesma sessão, o MP cobra o fato de crianças estarem sentadas do outro lado da rua, sem atividade, no meio de uma tarde de sol. Inclusive uma pequena de cinco anos, recém-chegada na casa, que torce entre as mãos uma garrafa pet plástica como brinquedo.
– Ócio é uma coisa importante para a saúde mental – justifica uma servidora pública.
Em poucos minutos, todos são chamados para dentro. Uma atendente da área da saúde explica que a menina de cinco anos chegou naquela semana, seguida pela irmã bebê, que fora jogada contra um aparelho de TV pelo pai. Ferida especialmente no rosto e na boca, a bebê só pôde ir para o abrigo quando a equipe teve dinheiro para comprar a pomada necessária para as feridas da boca.
A audiência prossegue. A juíza reclama da falta de informação em um Plano Individual de Atendimento, conhecido como PIA.
– A equipe ficou 30 dias trabalhando em PIAs! – reage, exaltada, uma funcionária do abrigo.
Bem, o PIA é um dever. Segundo a lei, é um relatório que tem de ser produzido assim que uma criança ou adolescente é abrigado. E deve ser renovado a cada seis meses. O PIA conta a história do indivíduo. É importante ferramenta para a tomada de decisões.
– Por que as conveniadas funcionam? Têm mais técnicos? – questiona a juíza, referindo-se às casas gerenciadas por meio de convênios.
– Somos tão vítimas desse sistema quanto as crianças. Quem devia estar aqui dando explicação é o presidente da Fasc – desabafa outra servidora que, em seguida, chora.
Minutos de constrangimento na sala de TV do abrigo municipal onde ocorre a audiência. Uma sala, aliás, que não tem TV, nem sofás, nem jogos, nem brinquedos e tampouco livros. Apesar de abrigar crianças pequenas, o local também não tem proteção nas janelas.
Aos 15 anos, mendicância, pequenos delitos e evasão
Agora, a instância é outra. A audiência é sobre abrigos mantidos pelo Estado, sob a tutela da Fundação de Proteção Especial (FPE). O tema é um jovem de 15 anos. É abril e ele está “evadido” da casa de acolhimento desde janeiro. A equipe suspeita que ele esteja na casa da avó materna e sabe que tem sido visto em situação de mendicância e talvez até cometendo pequenos delitos para sustentar o vício.
– Acolhimento não é espaço de contenção – justifica um representante da FPE.
– Bom, ele está perdido então? – indaga a juíza.
– Quem sabe mandar ele para o João-de-Barro ou o Quero-Quero? Porque se a gente traz ele para dentro do abrigo, ele traz a rua aqui para dentro – arrisca o servidor público.
– O senhor sabe como estão o João-de-Barro e o Quero-Quero? Situação muito ruim. Isso não é solução – irrita-se a juíza.
Uma das medidas necessárias naquele momento é a de emitir guia de desligamento do abrigo, já que o tempo de evasão supera os 60 dias. A regra diz que em 60 dias, se não voltar, o indivíduo tem de ser oficialmente desvinculado da instituição. No caso em questão, o jovem está, então, evadido, desligado e, segundo “notícias”, vive na casa da avó. Em outra frente, segue tramitando no Judiciário um processo para destituição do poder familiar.
– Não vai adiantar de nada – comenta em tom de desânimo a juíza.
Na mesma audiência surge uma situação exemplar da morosidade de procedimentos nos abrigos, no MP e no Judiciário. Um grupo de cinco irmãos, acolhido em dezembro de 2010, saíra para experiência familiar com a mãe e o padrasto no final de 2011. Até o dia da audiência, em abril de 2015, os cinco seguiam ligados ao abrigo, apesar de estarem vivendo com a família nos últimos quatro anos. Os irmãos haviam sido acolhidos em 2010 porque o pai de três estava preso e a mãe se prostituía e negligenciava as crianças, que até fome passavam.
No período de experiência familiar, a ação judicial de destituição de poder familiar seguiu tramitando. Enquanto a equipe do abrigo atestou por mais de vez que a situação na família estava boa e sugeriu o desligamento dos irmãos da instituição, MP e Judiciário insistiam em pedir informações, localizar testemunhas, enviar precatórias, pedir estudos. A troca de endereço da família complicou o trâmite, causou desencontros. Em março de 2015, o MP pediu novo estudo social da família por conta do “histórico de negligência”. Vale lembrar que esse “histórico” era anterior a 2011. Em abril de 2015, a Justiça aceitou o pedido. Antes que a morosa estrutura se movimentasse para cumprir a determinação, ocorreu a audiência concentrada em que, enfim, os cinco irmãos foram oficialmente desligados do abrigo.
Diante das autoridades, no dia da audiência, mãe e padrasto compareceram com mais dois filhos, sendo que um oitavo estava por nascer.
– Teria como encaminhar, determinar, o planejamento familiar que a mãe já tentou na rede? – indaga uma assistente social à juíza e ao promotor.
– No Judiciário é tudo mais demorado. Vocês já conhecem os caminhos. Melhor vocês mesmo encaminharem – atesta o representante do MP diante do casal que mantém a família em um casebre comprado em uma área invadida na Capital.
E a ação contra a mãe, para perder o poder sobre os filhos, iniciada em julho de 2011, segue andando na Justiça. Um detalhe: a Lei da Adoção determina que ação de destituição de poder familiar deve ser julgada em 120 dias.
Aos 14 anos, sem poder voltar para casa
Em uma audiência é tratado o caso de um adolescente de 14 anos que passou pela Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) por um ato infracional grave. Ele é estudioso e carinhoso, elogiado pela equipe do abrigo. Não há notícias sobre os pais, dependentes químicos, mas tem avó amorosa que o visita regularmente e que cuida de outras duas netas, irmãs do adolescente. Por que ele não vive na casa da avó? Está ameaçado de morte naquele bairro, onde cometeu o ato infracional.
– Mas a rede não pode verificar a possibilidade dessa avó se mudar para outro bairro, para perto do abrigo? – indaga a juíza.
Representante da Secretaria Municipal de Governança diz que é, sim, possível tratar da situação, já que o município tem um leque de imóveis retomados por falta de pagamento. Então, parece simples uma possível solução na qual, até então, ninguém havia pensado.
Adolescente e mãe, proibida de ir à escola
No dia seguinte, o caso de uma adolescente de 16 anos é discutido. Ela está no abrigo com um bebê, que tem problemas de saúde.
Apesar de a situação da mãe dela ser considerada “positiva”, naquele dia já fazia seis meses que a jovem estava no abrigo sem que a equipe tivesse visitado a casa da mãe ou a do pai. Ao falar às autoridades, a jovem queixa-se de xingamentos proferidos por cuidadores.
“O juiz jogou vocês aqui como animais, bando de loucos que tomam remédios!”
“Meu filho está em casa, não precisa estar aqui como vocês.”
“Fala rapidinho que estou cheio de PIAs para fazer.”
“Não temos que amar vocês”.
– Não cheguei pedindo amor... – tenta argumentar a jovem para a juíza e o representante do MP.
Ela também confirma que está de “castigo”, proibida de ir à escola.
– Ela está abrigada desde julho e vocês não conhecem a casa, a família? E castigam proibindo a escola? Como? – tasca a juíza para os espectadores.
– A rede não tem alinhamento total na cidade – diz uma servidora tentando explicar a falta de visitas aos familiares da jovem.
A rede de que se fala é algo organizado para funcionar desde muito antes de as crianças e adolescentes chegarem aos abrigos. É um sistema que se divide em baixa, média e alta complexidade destinado a atender famílias carentes. Se o lar está em más condições, se os pais estão doentes, se são dependentes químicos, agressores, negligentes, se a família passa necessidades extremas, se as crianças estão fora da escola, enfim, tudo deveria entrar nesse radar para ser contornado.
Há tentáculos e recursos direcionados a isso e visando a evitar o pior rompimento, que é a retirada das crianças de casa.
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