ZERO HORA 26 de julho de 2015 | N° 18238
VÍTIMAS DE ABRIGOS
Em 11 anos, (quase) nada mudou
Será que morosidade e burocracia são a resposta para estarmos falando de um cenário tão desolador na proteção à infância e à juventude, debatido há anos sem solução efetiva? Depois do alvoroço entre MP e Judiciário, no ano passado, sobre falhas de um ou de outro, a rede decidiu buscar respostas. Em maio, a Corregedoria-Geral da Justiça criou um grupo de trabalho para “estudo a respeito de medidas destinadas ao aumento da eficiência do serviço no âmbito do Juizado Regional da Infância e Juventude”. Vão debater rotinas de trabalho, fluxo de informações.
Devem descobrir, por exemplo, que equipes dos abrigos que precisam trabalhar o vínculo dos acolhidos com familiares não têm acesso a detalhes do andamento da ação de destituição de poder familiar. Então, podem estar aproximando a criança de uma mãe ou de um pai que já perdeu ou está prestes a perder o direito de criar o filho.
Também será avaliado o quesito estrutura. Excluindo o pessoal do regime de exceção, o 2º Juizado da Infância e da Juventude, responsável por ações de acolhimento, de destituição de poder familiar, de adoções e outras, tem apenas uma juíza para zelar por 4,7 mil processos relacionados a 3,4 mil crianças na Capital. O prazo para o grupo de trabalho dar respostas é de 90 dias, prorrogáveis por mais 90.
Talvez venha daí explicação para casos como o do João-de-Barro, que há tanto tempo é um exemplo perfeito do que não deu certo. Há 11 anos, ZH flagrou a rotina no abrigo Municipal Ingá Brita, que com o projeto Figueira virou João-de-Barro e Quero-Quero. Quando anoitecia, jovens saíam pelo telhado para consumir drogas na calçada próxima ao abrigo. Também eram conhecidos na região por pedir esmolas e pela prática de furtos e de roubos. Quando a reportagem foi publicada, em maio de 2004, houve corre-corre, reuniões, explicações. Funcionários confirmaram os problemas como sendo antigos, disseram sofrer ameaças dos acolhidos e ter medo. O MP abriu procedimento de investigação. A Fasc anunciou providências.
O SISTEMA DE ACOLHIMENTO NÃO FUNCIONA, DIZ ESPECIALISTA
O resultado está nas páginas que você leu até aqui. Quase nada mudou. Só em relação ao João-de-Barro há na Justiça duas ações para apurar irregularidades. Expedientes tramitam sem uma solução que traga, de fato, a proteção prevista em lei. São périplos que se perdem no tempo, enquanto as crianças crescem longe dos lares dos sonhos. Na edição de segunda-feira, ZH mostrará que denúncias de irregularidades nos abrigos motivaram a abertura de 54 procedimentos administrativos pelo MP só em Porto Alegre, 13% deles para apurar casos de abuso sexual, 17% maus-tratos e 40% negligência no atendimento.
Depois de atuar por anos na fiscalização de abrigos, o hoje desembargador José Antônio Daltoé Cézar atesta:
– O sistema de acolhimento institucional está ultrapassado, não funciona. É preciso pensar alternativas, como o acolhimento em famílias que recebam verba para isso. As crianças não podem ficar anos nesses lugares. Dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que uma criança de seis anos tem 4% de chance de ser adotada. Uma de nove anos, 0% de chance. Dos 50 mil acolhidos no Brasil hoje, só 10% estão com situação jurídica definida. Então o que estamos fazendo com essas crianças em instituições sem condições?
Em agosto, a juíza Sonáli completa 10 meses à frente das audiências concentradas, um mutirão que foi criado para durar um ano. Já está na segunda rodada de visitas, ou seja, retornando às casas em que esteve no semestre passado, e nelas, tem esbarrado nos mesmos e em novos problemas.
– Estamos falando de uma população invisível, que não tem ninguém que brigue por ela, que cobre do MP, do Judiciário, de todos os entes do poder público o que estão deixando de fazer por quem deveria ser prioridade – desabafa.
Além do esmero com que faz e cuida de seus ninhos, bem visíveis pela cidade, o joão-de-barro deixa outro exemplo para quem tem a responsabilidade de zelar com prioridade por crianças e adolescentes: cuida de seus filhotes até que tenham idade para enfrentar o mundo sozinhos.
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