quarta-feira, 29 de julho de 2015

OS 25 ANOS DO ECA, POR QUE POUCOS AVANÇOS?


JORNAL DO COMÉRCIO 29/07/2015 



Rosane Villanova



O Estatuto da Criança do Adolescente – também conhecido como ECA – Lei nº 8.069/90, completou 25 anos em 13/07/2015. Esta lei prevê deveres para pais, sociedade e Estado, a fim de garantir às crianças e adolescentes, seres em desenvolvimento, as condições necessárias para tornarem-se cidadãos de bem.

O ECA determina direitos como educação, saúde, lazer e outros, com o fim de facilitar à população infanto-juvenil o acesso ao desenvolvimento pleno (físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade). Os pais têm o dever de educar e proteger, e respondem por negligências e maus tratos. A sociedade tem o dever de zelar, denunciando – ao Conselho Tutelar – suspeitas de ameaças e violações de direitos, da mesma forma os profissionais da saúde e educadores, todos devem ser os olhos e a voz das crianças e dos adolescentes. Há, também, o devido regramento do processo de adoção, viagens ao exterior e trabalho infantil, coibindo explorações. O Estado é um dos violadores de direitos, não fosse assim, todos teriam acesso à escola, ao pediatra, ao dentista e a uma vida digna. Ao contrário, há uma legião de desprotegidos, muito embora um estatuto tão ricamente carregado de direitos (e poucos deveres, será?). Avanço? Sim, mas singelo. Prova disto é o Conselho Tutelar, órgão de proteção à criança e ao adolescente: pesquisas mostram o quanto estão desaparelhados, muitos com estrutura precária. Os Conselhos Municipais de Direitos, quando operantes de fato, passam pelas maiores dificuldades. Apenas 100 cidades do Estado usarão urnas eletrônicas nas eleições do Conselho Tutelar.
Perguntas que não podem calar: a) como fica a transparência do processo de escolha dos guardiões dos direitos das crianças e adolescentes nos demais 397 municípios, sem urnas eletrônicas?; b) há interesse real por parte do Estado em aparelhar um Conselho Tutelar e o Conselho de Direitos, que vão cobrar dele uma gama de direitos?; c) estamos garantindo direitos e o desenvolvimento das crianças e adolescentes, ou brincando de protegê-los?; d) melhor reduzir a maioridade penal e tirar esta “corja” do nosso convívio ou garantir direitos?; e) você sabe o que é o Conselho Tutelar e participará do processo de escolha?; f) por fim, quais crianças são o futuro da humanidade: apenas os nossos filhos?

Vice-presidente do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente de Guaíba/RS

ACOLHIMENTO DESPROTETIVO



ZERO HORA 29 de julho de 2015 | N° 18241


JOSÉ CARLOS STURZA DE MORAES*



Neste ano, em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completa 25 anos, comemoramos a redução da mortalidade infantil e o expressivo aumento do ingresso de crianças no Ensino Fundamental. Mas existem desafios que ainda nos dizem da distância entre o anúncio de direitos e seu gozo efetivo. Nesse sentido, as reportagens de Zero Hora (vítimas de abrigos) socializam uma das mais antigas chagas do sistema protetivo: o atendimento às crianças e adolescentes retirados de suas famílias de origem. Esses “filhos do Estado”, apesar dos esforços de muitos técnicos e cuidadores, são expostos a inúmeros maus-tratos, os quais já foram exaustivamente relatados e construídos procedimentos que deveriam garantir proteção e cuidado dignos

O enfrentamento a situações como as trazidas pelas matérias, tanto em instituições públicas quanto privadas, foi um dos motivadores do próprio texto estatutário. Desde então, com a atuação de Conselhos de Direitos e Tutelares, reduzimos o número de acolhidos. Das quase 100 mil crianças e adolescentes em acolhimento na década de 1990, temos hoje cerca de 30 mil. Mas essa redução não garante proteção àqueles que estão acolhidos. Os prazos e outros procedimentos previstos no Estatuto não têm sido respeitados por instituições, Ministério Público e Poder Judiciário. Sendo este último o poder que menos investe em estruturas técnicas de assessoria e fiscalização, não garantindo o mandamento constitucional de absoluta prioridade que cabe ao segmento criança e adolescente.

São frequentes as situações relatadas ao Poder Judiciário e Ministério Público e que não têm retorno às equipes das instituições de acolhimento e outros serviços das redes de proteção. Tanto no RS quanto em outros Estados se convive ainda com sistemas que separam irmãos, por sexo e idade, penalizando com a quebra de vínculos e fragilizando a mútua proteção.

Tanto os Conselhos de Direitos quanto as demais agências protetivas precisam efetivar os procedimentos contidos nas leis, assim como gestores e mantenedores de serviços necessitam dar suporte para que o acolhimento institucional e o acolhimento familiar sejam, efetivamente, protetivos.

Cientista social, conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda)*

terça-feira, 28 de julho de 2015

HORROR NOS ABRIGOS



ZERO HORA 28 de julho de 2015 | N° 18240


EDITORIAIS



Nada é mais urgente, para centenas de crianças e adolescentes mantidos em abrigos públicos de Porto Alegre, do que uma resposta rápida das autoridades ao ambiente de terror instalado em algumas dessas casas. Reportagens publicadas por Zero Hora não deixam dúvida de que o setor público fracassa também na proteção a quem deveria ter o decidido acolhimento do Estado. Violência sexual, maus-tratos e outros delitos cometidos contra os internos expõem a face cruel de instituições e pessoas sustentadas pela sociedade para, em tese, socorrer quem já sofre o descaso das próprias famílias e ainda se defronta com possibilidades mínimas de um dia vir a ser beneficiado por uma adoção.

Mesmo que se considere que tais casos são exceção, em mais de cem abrigos da Capital, alguns mantidos por ONGs, que acolhem um total de 1,3 mil crianças e adolescentes, nada justifica o que foi constatado por investigações do Ministério Público. Fica exposta, em grande parte dos casos, uma combinação de violência e negligência, como revelam 32 das 59 sindicâncias conduzidas pelo MP a partir de julho do 2014. O índice de irregularidades em 54% dos abrigos demonstra que a estrutura não é apenas falha, mas delituosa e, nos casos menos graves, omissa em relação ao que acontece.

Outra constatação é de que não se trata de uma novidade. ZH já havia mostrado, em 2004, que situa- ções semelhantes se reproduziam nos abrigos. Esse não é um drama de responsabilidade apenas do MP e da Justiça. É, antes, uma questão a ser enfrentada pelos órgãos de governo responsáveis por uma área que não poderia falhar com as expectativas e os sonhos de quem depende basicamente dos governos estadual e municipal para continuar vivendo com dignidade.

CUIDAR É PRECISO. ABUSAR É PROIBIDO


ZERO HORA 28 de julho de 2015 | N° 18240



MARIA BERENICE DIAS*



Todo o Rio Grande chorou ao ler as reportagens sobre os maus- tratos cometidos contra crianças e adolescentes por quem deveria cuidá-los e protegê-los (ZH de 26 e 27/7).

Não há como não se sensibilizar com a verdade escancarada, de maneira nua e crua, do que acontece nos abrigos, que, como o próprio nome diz, deveriam abrigar, acolher.

Quem lá está depositado já passou por situação de negligência, maus-tratos, violência física ou abuso sexual. Ou tudo isso junto.

Foram retirados do lar – que deveria ser um lugar de proteção – para serem cuidados pelo Estado. Não são.

Claro que, diante de tudo o que passam, anos a fio, não é difícil entender por que, ao serem adotados, acabam testando quem os acolhe. Afinal, foram inúmeras vezes traídos pelas pessoas nas quais confiaram: primeiro, os pais e, depois, os chamados “educadores”. Quem sabe não é esta a origem de algumas devoluções que acontecem, o que, é claro, gera mais traumas e a crença de que se tornaram um verdadeiro estorvo social.

Na reportagem chama a atenção a história de José. Foi institucionalizado aos quatro anos por ter sido abusado sexualmente pelo companheiro da avó. Por que não foi imediatamente disponibilizado à adoção? O que levou o Estado a permitir que lá permanecesse até a adolescência? Acabou sendo encaminhado à internação psiquiátrica por apresentar depressão, automutilação e ingestão de substâncias não alimentares. Durante anos continuou sendo abusado, inclusive depois que se encontrava hospitalizado, oportunidade em que denunciou os abusos de que foi vítima.

Às claras, que situações como esta, e todas as demais retratadas nas reportagens, não podem se perpetuar. É necessário que o Estado assuma a responsabilidade de garantir a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar, que lhes é assegurado constitucionalmente.

Não é buscando de maneira negligente e morosa a reinserção na família biológica ou tentando encontrar alguém da família extensa e que, muitas vezes, sequer a criança conhece, para só então ter início o processo de destituição do poder familiar.

*Advogada, vice-presidente do Ibdfam

segunda-feira, 27 de julho de 2015

NEGLIGÊNCIAS E SUPERLOTAÇÕES



ZERO HORA 27 de julho de 2015 | N° 18239


VÍTIMAS DE ABRIGOS




Quase metade dos 54 procedimentos apura negligência, como a má administração de medicamentos. Há procedimentos para investigar o uso indevido de remédios a soropositivos e calmantes como punição.

Acolhidos relataram sofrer “ameaças de encaminhamento para um posto de saúde”, onde seriam medicados por estarem agitados. Ameaça que se assemelha a método de tortura, conforme a professora Samantha Dubugras Sá.

– Me parece o eletrochoque de antigamente. Se não ficar calminho, vai tomar um choque e te aquietar – comenta a especialista, ao alertar que a ingestão indevida de fármacos pode provocar dependência, intoxicação ou overdose, que podem levar à morte.

Filhas de soropositivos sem tratamento e dependentes químicos, quatro crianças – de cinco, seis, sete e 11 anos – eram agredidas, passavam fome, dormiam no mesmo colchão e não tinham nenhuma rotina de higiene. Com o acolhimento determinado pela Justiça, os pequenos não tiveram vagas imediatas em abrigos da Capital devido à superlotação. A história dos irmãos integra um inquérito civil sobre a falta de vagas no serviço de Porto Alegre. Atualmente, conforme o MP, 18% dos abrigos possuem mais acolhidos do que o máximo determinado pelo governo.

Depois de cometer furtos e usar drogas, o primogênito foi internado no Centro Integrado de Atenção Psicossocial – Infância e Adolescência (Ciaps), onde relatou ter “roupas limpas e quentinhas”.

– Tem uma cama só para mim – disse o garoto.

Em 1º de agosto, a Justiça determinou que ele e os irmãos fossem acolhidos “com urgência”, mas as vagas foram liberadas uma semana depois. A superlotação também obriga os abrigos a improvisar espaço aos acolhidos, que muitas vezes dormem no chão.

Entre as investigações, há uma sobre o Plano de Prevenção Contra Incêndios (PPCI). Conforme ofício dos bombeiros, apenas sete dos 104 abrigos possuía o documento em novembro de 2014, situação que se mantém, segundo o MP. Caso não resolvam os problemas, as casas podem ser fechadas pelo órgão.

história dos irmãos integra um inquérito civil sobre a falta de vagas no serviço de Porto Alegre. Atualmente, conforme o MP, 18% dos abrigos possuem mais acolhidos do que o máximo determinado pelo governo.

Depois de cometer furtos e usar drogas, o primogênito foi internado no Centro Integrado de Atenção Psicossocial – Infância e Adolescência (Ciaps), onde relatou ter “roupas limpas e quentinhas”.

– Tem uma cama só para mim – disse o garoto.

Em 1º de agosto, a Justiça determinou que ele e os irmãos fossem acolhidos “com urgência”, mas as vagas foram liberadas uma semana depois. A superlotação também obriga os abrigos a improvisar espaço aos acolhidos, que muitas vezes dormem no chão.

Entre as investigações, há uma sobre o Plano de Prevenção Contra Incêndios (PPCI). Conforme ofício dos bombeiros, apenas sete dos 104 abrigos possuía o documento em novembro de 2014, situação que se mantém, segundo o MP. Caso não resolvam os problemas, as casas podem ser fechadas pelo órgão.

A ASSUSTADORA ROTINA DE AGRESSÕES



ZERO HORA 27 de julho de 2015 | N° 18239. 


FERNANDA DA COSTA


VITIMAS DE ABRIGOS.



Agressões são relatadas por acolhidos em 10 procedimentos que investigam maus-tratos na Promotoria da Infância. Uma criança disse que um educador “arrastou sua cara no chão” e duas adolescentes afirmaram terem sido imobilizadas “com o pé no pescoço”. Essas garotas ainda narraram ter tido as veias pressionadas até perderem as forças – técnica que, segundo a investigação, é usada em artes marciais para provocar desmaios nos adversários.

João*, 11 anos, disse que foi jogado contra a parede por um educador e que o irmão, de apenas quatro anos, levou um “tapa na boca” de uma funcionária, “saindo sangue”.

– A educadora (...) também maltrata os acolhidos, sentando eles no chão, abrindo as suas pernas, esticando os braços para cima e colocando o joelho em suas costas – relatou João.

Em outros depoimentos, abrigados dizem ter presenciado uma menina de nove anos sendo “contida” pelo pescoço e um menino deixado “no chão com as mãos para trás”. Há relatos também de um educador que castigaria uma criança com deficiência e um menino de quatro, os deixando em cima de um armário, e de uma funcionária que privaria acolhidos do almoço.

– É comum, no turno da noite, as agentes educadoras (...) deixarem os acolhidos menores em pé na cozinha por cinco horas contínuas, sendo que eles estudam de manhã – contou Joana*, 15 anos, ao MP, referindo-se a crianças de 10 e 11 anos.

Os suspeitos de maus-tratos representam 3,8% do total de funcionários dos abrigos, e um educador ouvido pela reportagem alerta que há denúncias inverídicas.

– Tivemos um caso em que a criança relatou que foi jogada na parede, mas o educador provou que, na verdade, a segurou junto à parede, para que não agredisse outro acolhido. Se seguramos, passamos por agressores, mas se não seguramos, passamos por negligentes, por não evitar que um batesse no outro – afirma o profissional, que preferiu não ter o nome divulgado.

Conforme a promotora da Infância e da Juventude Cinara Vianna Dutra Braga, de 5 de março de 2014 até 3 de julho de 2015, o MP concluiu 59 investigações, 32 delas (54%) com irregularidades constatadas:

– O índice mostra que a forma de contratação e capacitação dos servidores precisa ser revista. É inadmissível que quem é obrigado a cuidar, negligencie.

Os suspeitos podem responder pelo crime de maus-tratos e omissão, cuja pena é de até quatro anos de prisão quando há lesão corporal grave, fora agravantes. Agressores, diretores das casas e mantenedoras também estão sujeitos a pagar indenização às vítimas.




Eles devem ser tratados como ‘bichos’, diz educador


Procedimentos que apuram maus-tratos também envolvem casos de assédio moral. Acolhidos relatam que são “tratados de maneira desrespeitosa e grosseira, mediante gritos e ameaças”. Algumas vezes, também são alvo de deboche e humilhação. Um educador teria dito aos acolhidos que todos “deveriam ser tratados como bichos”, outro chamado meninos de “boiolas” e outros cometido bullying com uma adolescente com sobrepeso, dizendo-lhe que ela irá “explodir”.

– Guri, só fala comigo quando parar de babar – teria dito um funcionário a um acolhido com deficiência.

A professora de Psicologia da PUCRS Samantha Dubugras Sá afirma que a violência psicológica afeta gravemente a autoestima, e as vítimas podem reproduzir esse comportamento com os mais novos.

– Esse tipo de assédio funciona como se fosse um bloqueador de afeto. A pessoa sofre psicologicamente e vai endurecendo até que o resquício de afeto que poderia haver acaba sumindo – explica.

A punição para os responsáveis pelos danos morais, caso confirmados, vai do afastamento à responsabilização criminal.




Num universo de 104 casas, três bons exemplos


A grande maioria dos profissionais que atua nos abrigos (96%) não está envolvida nas investigações de irregularidades, e alguns são elogiados ao Ministério Público. Conforme o MP, há abrigos que são referência em atendimento e estrutura física, como a Casa do Excepcional Santa Rita de Cássia, que atende crianças com lesões cerebrais e é mantida por uma organização não-governamental, a SOS – Casas de Acolhida, destinada a crianças de zero a seis anos, e o Lar da Criança e do Adolescente Menino Jesus (Larcamje), ambas mantidas por entidades de assistência social em parceria com a prefeitura.

Há 20 anos em funcionamento em Porto Alegre, a SOS – Casas de Acolhida atende atualmente 25 crianças e tem o mesmo número de funcionários. A seleção dos educadores é feita em três etapas: análise de currículo (é preciso ter experiência na área, Ensino Médio completo e preferencialmente curso de educador social), entrevistas com duas psicólogas e a coordenadora, e período de teste.

– Nenhuma criança vem com manual. O segredo (do bom atendimento) está na capacitação – afirma Suzana Valente, coordenadora da casa.

Depois de contratados, os funcionários passam por capacitação sobre a metodologia da casa, baseada na teoria da pediatra húngara Emmi Pikler, em que o adulto deve estabelecer uma relação de confiança e interação com crianças desde que são bebês.

Casas de Acolhida e Casa do Excepcional Santa Rita de Cássia são modelos de boa gestão





















MAUS-TRATOS E ABUSOS



ZERO HORA 27 de julho de 2015 | N° 18239


FERNANDA DA COSTA


VITIMAS DE ABRIGOS


EM SEGUNDA REPORTAGEM sobre crianças e adolescentes acolhidos em abrigos da Capital, Zero Hora apresenta números estarrecedores e situações de extrema gravidade vivenciadas por aqueles que acabam sofrendo em dobro


Rosto arrastado no chão, imobilização com pé no pescoço e braço torcido até a queda. Cenas que poderiam ter se passado em porões de tortura foram relatadas por crianças e adolescentes que vivem em abrigos de Porto Alegre. Em alguns casos, os acolhidos ainda afirmaram ter sofrido abuso sexual.

Encaminhado a um abrigo por ter sido estuprado pelo companheiro da avó aos quatro anos, José* teria sido vítima do mesmo crime no local. O delito, assim como os maus-tratos, teria sido cometido por profissionais contratados para cuidar dos acolhidos, nesses locais cujo objetivo é protegê-los. Para as crianças, isso significa ter os direitos duplamente violados, já que foram encaminhadas a essas casas por sofrerem violência familiar.

A denúncia de José integra um dos 54 procedimentos administrativos abertos pelo Ministério Público da Capital para apurar irregularidades nesses abrigos, sendo 13% sobre abuso sexual, 17% maus-tratos e 40% negligência no atendimento. Zero Hora analisou 25 processos, que somam 3,3 mil páginas (leia no quadro abaixo).

Quase metade das denúncias de abuso sexual envolve funcionários dos abrigos. São oito denúncias, sendo três com empregados suspeitos. Encaminhado à internação psiquiátrica por apresentar depressão, automutilação e ingestão de substâncias não alimentares, José relatou o abuso no hospital.

– Ficava dizendo piadinha, eu dizia para parar, ele continuava, dizendo: “E aí, na bundinha não vai nada?” – contou o adolescente durante a internação.

Houve situações, segundo José, em que o educador abaixava as calças e pedia que ele beijasse seu pênis. O funcionário também teria levado o adolescente e outro acolhido para casa:

– Colocou um filme de zumbi para a gente ver. Daí me chamou, meu amigo ficou na sala assistindo, e eu fui. Ele estava pelado e disse para secar as costas dele. Perguntou se eu “queria brincar”.

O educador ainda teria abusado do adolescente no hospital, antes de ele ter revelado o fato à equipe médica:

– Ele passou a mão na minha bunda e disse que ia me dar o que eu queria, que sabia o que meu vô fez comigo, que era de família e sabia que eu gostava.

O profissional foi afastado do abrigo e indiciado pela Polícia Civil por estupro de vulnerável e lesão corporal, cujas penas podem chegar a 16 anos de prisão. Além da denúncia de José, o MP tem outros dois procedimentos que investigam funcionários suspeitos de abuso sexual. Em um dos casos, uma menina de três anos relatou à mãe adotiva que, no abrigo, uma “tia” a teria machucado durante o banho, “enfiando o dedo na frente e atrás”.

A mantenedora do abrigo transferiu a servidora e abriu uma sindicância para investigá-la. No outro caso, o MP apura uma denúncia em que uma técnica passaria a mão “nas partes íntimas” de quatro acolhidas adolescentes e ofereceria “presentes em troca”.

* Os nomes das crianças e adolescentes foram trocados nesta reportagem, em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nomes de mantenedores, abrigos e funcionários foram omitidos a pedido do MP, para não atrapalhar as investigações.



domingo, 26 de julho de 2015

O SISTEMA DE ACOLHIMENTO NÃO FUNCIONA




ZERO HORA 26 de julho de 2015 | N° 18238

VÍTIMAS DE ABRIGOS



Em 11 anos, (quase) nada mudou



Será que morosidade e burocracia são a resposta para estarmos falando de um cenário tão desolador na proteção à infância e à juventude, debatido há anos sem solução efetiva? Depois do alvoroço entre MP e Judiciário, no ano passado, sobre falhas de um ou de outro, a rede decidiu buscar respostas. Em maio, a Corregedoria-Geral da Justiça criou um grupo de trabalho para “estudo a respeito de medidas destinadas ao aumento da eficiência do serviço no âmbito do Juizado Regional da Infância e Juventude”. Vão debater rotinas de trabalho, fluxo de informações.

Devem descobrir, por exemplo, que equipes dos abrigos que precisam trabalhar o vínculo dos acolhidos com familiares não têm acesso a detalhes do andamento da ação de destituição de poder familiar. Então, podem estar aproximando a criança de uma mãe ou de um pai que já perdeu ou está prestes a perder o direito de criar o filho.

Também será avaliado o quesito estrutura. Excluindo o pessoal do regime de exceção, o 2º Juizado da Infância e da Juventude, responsável por ações de acolhimento, de destituição de poder familiar, de adoções e outras, tem apenas uma juíza para zelar por 4,7 mil processos relacionados a 3,4 mil crianças na Capital. O prazo para o grupo de trabalho dar respostas é de 90 dias, prorrogáveis por mais 90.

Talvez venha daí explicação para casos como o do João-de-Barro, que há tanto tempo é um exemplo perfeito do que não deu certo. Há 11 anos, ZH flagrou a rotina no abrigo Municipal Ingá Brita, que com o projeto Figueira virou João-de-Barro e Quero-Quero. Quando anoitecia, jovens saíam pelo telhado para consumir drogas na calçada próxima ao abrigo. Também eram conhecidos na região por pedir esmolas e pela prática de furtos e de roubos. Quando a reportagem foi publicada, em maio de 2004, houve corre-corre, reuniões, explicações. Funcionários confirmaram os problemas como sendo antigos, disseram sofrer ameaças dos acolhidos e ter medo. O MP abriu procedimento de investigação. A Fasc anunciou providências.



O SISTEMA DE ACOLHIMENTO NÃO FUNCIONA, DIZ ESPECIALISTA


O resultado está nas páginas que você leu até aqui. Quase nada mudou. Só em relação ao João-de-Barro há na Justiça duas ações para apurar irregularidades. Expedientes tramitam sem uma solução que traga, de fato, a proteção prevista em lei. São périplos que se perdem no tempo, enquanto as crianças crescem longe dos lares dos sonhos. Na edição de segunda-feira, ZH mostrará que denúncias de irregularidades nos abrigos motivaram a abertura de 54 procedimentos administrativos pelo MP só em Porto Alegre, 13% deles para apurar casos de abuso sexual, 17% maus-tratos e 40% negligência no atendimento.

Depois de atuar por anos na fiscalização de abrigos, o hoje desembargador José Antônio Daltoé Cézar atesta:

– O sistema de acolhimento institucional está ultrapassado, não funciona. É preciso pensar alternativas, como o acolhimento em famílias que recebam verba para isso. As crianças não podem ficar anos nesses lugares. Dados do Conselho Nacional de Justiça mostram que uma criança de seis anos tem 4% de chance de ser adotada. Uma de nove anos, 0% de chance. Dos 50 mil acolhidos no Brasil hoje, só 10% estão com situação jurídica definida. Então o que estamos fazendo com essas crianças em instituições sem condições?

Em agosto, a juíza Sonáli completa 10 meses à frente das audiências concentradas, um mutirão que foi criado para durar um ano. Já está na segunda rodada de visitas, ou seja, retornando às casas em que esteve no semestre passado, e nelas, tem esbarrado nos mesmos e em novos problemas.

– Estamos falando de uma população invisível, que não tem ninguém que brigue por ela, que cobre do MP, do Judiciário, de todos os entes do poder público o que estão deixando de fazer por quem deveria ser prioridade – desabafa.

Além do esmero com que faz e cuida de seus ninhos, bem visíveis pela cidade, o joão-de-barro deixa outro exemplo para quem tem a responsabilidade de zelar com prioridade por crianças e adolescentes: cuida de seus filhotes até que tenham idade para enfrentar o mundo sozinhos.

DRAMAS DEBATIDOS EM AUDIÊNCIAS



ZERO HORA 26 de julho de 2015 | N° 18238


VÍTIMAS DE ABRIGOS




É meados de dezembro de 2014 e o que mais se ouve no abrigo é: “Quero passar o Natal com minha mãe, em casa”!!!

É dia de audiência e as crianças estão eufóricas com a presença de autoridades em um abrigo mantido pela prefeitura. Usam as melhores roupas.

O primeiro caso é o de três irmãos, dois deles gêmeos.

– A família se mudou. Não conhecemos – informa um conselheiro tutelar.

O trio está abrigado há meses e a equipe ainda não tem informações sobre familiares que possam ficar com as crianças caso a mãe seja considerada incapaz para isso. Esta é uma alternativa à adoção: manter em família.

As equipes dos abrigos têm de fazer sempre a busca com ajuda da rede que está na rua, como o Conselho Tutelar. Neste caso, ninguém fizera até aquele momento.

Há problemas também com a saúde dos três. Os gêmeos esperam por atendimento psicológico sistemático. A irmã, soropositiva, precisa consulta com infectologista, além de tratamento com fisioterapia. Esperam pela rede pública de saúde.

– Toda criança abrigada a gente acredita que precisa de atendimento psicológico – lamenta um membro da equipe do abrigo.

Faltam consultas, sobra uma certeza: é claro que crianças e adolescentes vindos de situações traumáticas, de violência e negligência, necessitam de atendimento psicológico permanente. Mas não têm.

As falhas seguem na área da educação. Um dos meninos perdeu o ano escolar. A certidão de nascimento tinha sido trocada com a do irmão gêmeo. Um estava indo à aula no lugar do outro. A confusão só foi descoberta quando houve troca de abrigo, no final do ano de 2014. Tarde demais.

– Mas que medidas vocês adotam quando recebem um não (no caso, o não dado pela escola quanto à situação do aluno)? Ele perdeu o ano e pronto? Vocês são os pais, os responsáveis! – cobra a representante do Ministério Público.

– A gente controla o incêndio. Apagar já é luxo – defende-se uma integrante da equipe.

– Essas crianças continuam em situação de risco abrigadas. São retiradas de casa pela negligência dos pais. E a negligência do abrigo, o que a gente faz? – reclama a promotora.

PASSATEMPO DE CRIANÇA É TORCER GARRAFA PET


Durante a mesma sessão, o MP cobra o fato de crianças estarem sentadas do outro lado da rua, sem atividade, no meio de uma tarde de sol. Inclusive uma pequena de cinco anos, recém-chegada na casa, que torce entre as mãos uma garrafa pet plástica como brinquedo.

– Ócio é uma coisa importante para a saúde mental – justifica uma servidora pública.

Em poucos minutos, todos são chamados para dentro. Uma atendente da área da saúde explica que a menina de cinco anos chegou naquela semana, seguida pela irmã bebê, que fora jogada contra um aparelho de TV pelo pai. Ferida especialmente no rosto e na boca, a bebê só pôde ir para o abrigo quando a equipe teve dinheiro para comprar a pomada necessária para as feridas da boca.

A audiência prossegue. A juíza reclama da falta de informação em um Plano Individual de Atendimento, conhecido como PIA.

– A equipe ficou 30 dias trabalhando em PIAs! – reage, exaltada, uma funcionária do abrigo.

Bem, o PIA é um dever. Segundo a lei, é um relatório que tem de ser produzido assim que uma criança ou adolescente é abrigado. E deve ser renovado a cada seis meses. O PIA conta a história do indivíduo. É importante ferramenta para a tomada de decisões.

– Por que as conveniadas funcionam? Têm mais técnicos? – questiona a juíza, referindo-se às casas gerenciadas por meio de convênios.

– Somos tão vítimas desse sistema quanto as crianças. Quem devia estar aqui dando explicação é o presidente da Fasc – desabafa outra servidora que, em seguida, chora.

Minutos de constrangimento na sala de TV do abrigo municipal onde ocorre a audiência. Uma sala, aliás, que não tem TV, nem sofás, nem jogos, nem brinquedos e tampouco livros. Apesar de abrigar crianças pequenas, o local também não tem proteção nas janelas.


Aos 15 anos, mendicância, pequenos delitos e evasão


Agora, a instância é outra. A audiência é sobre abrigos mantidos pelo Estado, sob a tutela da Fundação de Proteção Especial (FPE). O tema é um jovem de 15 anos. É abril e ele está “evadido” da casa de acolhimento desde janeiro. A equipe suspeita que ele esteja na casa da avó materna e sabe que tem sido visto em situação de mendicância e talvez até cometendo pequenos delitos para sustentar o vício.

– Acolhimento não é espaço de contenção – justifica um representante da FPE.

– Bom, ele está perdido então? – indaga a juíza.

– Quem sabe mandar ele para o João-de-Barro ou o Quero-Quero? Porque se a gente traz ele para dentro do abrigo, ele traz a rua aqui para dentro – arrisca o servidor público.

– O senhor sabe como estão o João-de-Barro e o Quero-Quero? Situação muito ruim. Isso não é solução – irrita-se a juíza.

Uma das medidas necessárias naquele momento é a de emitir guia de desligamento do abrigo, já que o tempo de evasão supera os 60 dias. A regra diz que em 60 dias, se não voltar, o indivíduo tem de ser oficialmente desvinculado da instituição. No caso em questão, o jovem está, então, evadido, desligado e, segundo “notícias”, vive na casa da avó. Em outra frente, segue tramitando no Judiciário um processo para destituição do poder familiar.

– Não vai adiantar de nada – comenta em tom de desânimo a juíza.

Na mesma audiência surge uma situação exemplar da morosidade de procedimentos nos abrigos, no MP e no Judiciário. Um grupo de cinco irmãos, acolhido em dezembro de 2010, saíra para experiência familiar com a mãe e o padrasto no final de 2011. Até o dia da audiência, em abril de 2015, os cinco seguiam ligados ao abrigo, apesar de estarem vivendo com a família nos últimos quatro anos. Os irmãos haviam sido acolhidos em 2010 porque o pai de três estava preso e a mãe se prostituía e negligenciava as crianças, que até fome passavam.

No período de experiência familiar, a ação judicial de destituição de poder familiar seguiu tramitando. Enquanto a equipe do abrigo atestou por mais de vez que a situação na família estava boa e sugeriu o desligamento dos irmãos da instituição, MP e Judiciário insistiam em pedir informações, localizar testemunhas, enviar precatórias, pedir estudos. A troca de endereço da família complicou o trâmite, causou desencontros. Em março de 2015, o MP pediu novo estudo social da família por conta do “histórico de negligência”. Vale lembrar que esse “histórico” era anterior a 2011. Em abril de 2015, a Justiça aceitou o pedido. Antes que a morosa estrutura se movimentasse para cumprir a determinação, ocorreu a audiência concentrada em que, enfim, os cinco irmãos foram oficialmente desligados do abrigo.

Diante das autoridades, no dia da audiência, mãe e padrasto compareceram com mais dois filhos, sendo que um oitavo estava por nascer.

– Teria como encaminhar, determinar, o planejamento familiar que a mãe já tentou na rede? – indaga uma assistente social à juíza e ao promotor.

– No Judiciário é tudo mais demorado. Vocês já conhecem os caminhos. Melhor vocês mesmo encaminharem – atesta o representante do MP diante do casal que mantém a família em um casebre comprado em uma área invadida na Capital.

E a ação contra a mãe, para perder o poder sobre os filhos, iniciada em julho de 2011, segue andando na Justiça. Um detalhe: a Lei da Adoção determina que ação de destituição de poder familiar deve ser julgada em 120 dias.



Aos 14 anos, sem poder voltar para casa

Em uma audiência é tratado o caso de um adolescente de 14 anos que passou pela Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) por um ato infracional grave. Ele é estudioso e carinhoso, elogiado pela equipe do abrigo. Não há notícias sobre os pais, dependentes químicos, mas tem avó amorosa que o visita regularmente e que cuida de outras duas netas, irmãs do adolescente. Por que ele não vive na casa da avó? Está ameaçado de morte naquele bairro, onde cometeu o ato infracional.

– Mas a rede não pode verificar a possibilidade dessa avó se mudar para outro bairro, para perto do abrigo? – indaga a juíza.

Representante da Secretaria Municipal de Governança diz que é, sim, possível tratar da situação, já que o município tem um leque de imóveis retomados por falta de pagamento. Então, parece simples uma possível solução na qual, até então, ninguém havia pensado.



Adolescente e mãe, proibida de ir à escola


No dia seguinte, o caso de uma adolescente de 16 anos é discutido. Ela está no abrigo com um bebê, que tem problemas de saúde.

Apesar de a situação da mãe dela ser considerada “positiva”, naquele dia já fazia seis meses que a jovem estava no abrigo sem que a equipe tivesse visitado a casa da mãe ou a do pai. Ao falar às autoridades, a jovem queixa-se de xingamentos proferidos por cuidadores.

“O juiz jogou vocês aqui como animais, bando de loucos que tomam remédios!”

“Meu filho está em casa, não precisa estar aqui como vocês.”

“Fala rapidinho que estou cheio de PIAs para fazer.”

“Não temos que amar vocês”.

– Não cheguei pedindo amor... – tenta argumentar a jovem para a juíza e o representante do MP.

Ela também confirma que está de “castigo”, proibida de ir à escola.

– Ela está abrigada desde julho e vocês não conhecem a casa, a família? E castigam proibindo a escola? Como? – tasca a juíza para os espectadores.

– A rede não tem alinhamento total na cidade – diz uma servidora tentando explicar a falta de visitas aos familiares da jovem.

A rede de que se fala é algo organizado para funcionar desde muito antes de as crianças e adolescentes chegarem aos abrigos. É um sistema que se divide em baixa, média e alta complexidade destinado a atender famílias carentes. Se o lar está em más condições, se os pais estão doentes, se são dependentes químicos, agressores, negligentes, se a família passa necessidades extremas, se as crianças estão fora da escola, enfim, tudo deveria entrar nesse radar para ser contornado.

Há tentáculos e recursos direcionados a isso e visando a evitar o pior rompimento, que é a retirada das crianças de casa.


O JOGO DE EMPURRA DOS PROBLEMAS



ZERO HORA 26 de julho de 2015 | N° 18238


VÍTIMAS DE ABRIGOS



Apesar de falarmos de uma área de prioridades e urgências, isso parece se refletir pouco na prática. A história de problemas do João-de-Barro, por exemplo, existe desde que ele foi criado, em 2008, para substituir um modelo falido: o do abrigo Ingá Brita. Três meses depois de inaugurado, as inspeções do MP já apontavam irregularidades. Quando começa uma saga jurídica, um imbróglio de ofícios, petições, representações, cobranças, troca de farpas e respostas vazias que se arrasta até hoje tendo Ministério Público de um lado e prefeitura de Porto Alegre de outro. Em dezembro de 2013, o MP representou à Justiça pedindo apuração de irregularidades no abrigo e que, caso não fossem sanados os problemas no prazo de três meses, a casa fosse fechada por não dar condições dignas de atendimento aos adolescentes.

O que parecia significar uma medida contundente se esvaiu no tempo em meio à burocracia. Cinco meses se passaram até que o pedido do MP virasse ação. O processo tramita até hoje na Justiça, em fase de instrução e sem solução. Desde então, o João-de-Barro trocou de endereço e já ocorreram pelo menos outras sete inspeções no local. O resultado é o óbvio. O desleixo, o desamor e a desproteção ainda são os principais ocupantes da casa especial.

Convocada em outubro do ano passado para atuar em regime de exceção na Vara da Infância e da Juventude, a fim de realizar audiências concentradas e tentar colocar em dia ao menos a situação jurídica de quem espera um lar de verdade, a juíza Sonáli Cruz Zluhan só pensa no quanto gostaria de fechar o João-de-Barro e o Quero-Quero:

– Esses lugares não funcionam. Só refletem o que não se conseguiu fazer e reforçam o sentimento de que esses jovens não vão dar certo.

A situação se agrava quando se vê que as falhas não estão restritas às condições do JB ou do Quero-Quero. Estão dissolvidas em maior ou menor grau em toda a rede de abrigos municipal e estadual. É o que contam repetidamente as inspeções do MP sobre as casas que deveriam proteger uma população em torno de 1,3 mil bebês, crianças e adolescentes, só na Capital. E o surpreendente é que esse universo tão protegido por sigilo – previsto em lei e sempre alegado em suposta defesa da própria criança ou adolescente – só começou a ser desvendado quando dois entes de peso dessa rede de proteção passaram a debater publicamente omissões e falhas no trabalho relacionado aos acolhidos.

Foi em setembro do ano passado. O MP deu o primeiro passo, divulgando que crianças ou adolescentes abrigados na Capital e já destituídos de suas famílias não constavam no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) por falha do Judiciário. Antes que fosse cobrado, o próprio MP revelou que quase 40% dos acolhidos não tinham sequer ação de destituição de poder familiar, que tem de ser iniciada pelo MP quando se constata que a família do abrigado não tem condições de ficar com ele. Com as descobertas, vieram medidas às pressas: MP e Judiciário criaram mutirões para revisar os casos e colocar o trabalho em dia. Foi assim que nasceu o regime de exceção comandado pela juíza Sonáli.

A ideia é a de audiências feitas nos próprios abrigos, reunindo crianças e adolescentes e entes da rede de proteção. Nas sessões é verificado se está sendo tentado vínculo com familiares, ou se existe ação de destituição, se ela está andando como deveria, se a criança está na escola, em cursos, se recebe o atendimento médico, se está bem tratada, alimentada, feliz, se brinca, onde dorme, que condições gerais tem a casa e por aí vai. É como se uma mãe ou pai zeloso sentasse com a família ao fim do dia para conversar. Enfim, é um olhar sobre o funcionamento de casas que deveriam operar como lares de verdade, tipo aquele dos sonhos descritos nas leis.

Claro que nenhuma casa é a dos sonhos. Sempre há um problema ou outro. Nos lares de onde os acolhidos são arrancados a regra é um misto de miséria, desatenção, desassistência em serviços básicos, abusos e negligências mil. Então, quando o poder público os abraça, é para dar, ao menos, o básico. Mas as audiências têm mostrado que essa rede é falha em quase tudo e com omissões de todos os seus agentes, incluindo Ministério Público, Judiciário, prefeitura, governo estadual.





COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Esta matéria é esclarecedora. Cita as "inspeções do MP apontando irregularidades e em seguida o começo de "uma saga jurídica, um imbróglio de ofícios, petições, representações, cobranças, troca de farpas e respostas vazias que se arrasta até hoje".

O MP representou à Justiça "pedindo apuração de irregularidades no abrigo e que, caso não fossem sanados os problemas no prazo de três meses, a casa fosse fechada por não dar condições dignas de atendimento aos adolescentes", que "se esvaiu no tempo em meio à burocracia". "O processo tramita até hoje na Justiça, em fase de instrução e sem solução. Desde então, o João-de-Barro trocou de endereço e já ocorreram pelo menos outras sete inspeções no local. O resultado é o óbvio. O desleixo, o desamor e a desproteção ainda são os principais ocupantes da casa especial."

E na justiça - a juíza diz que "gostaria de fechar o João-de-Barro e o Quero-Quero", alegando - "Esses lugares não funcionam. Só refletem o que não se conseguiu fazer e reforçam o sentimento de que esses jovens não vão dar certo." E as repetidas inspeções do MP mostram serem inúteis e incapazes de mudar o cenário. E daí surgem as medidas pontuais e apressadas - "MP e Judiciário criaram mutirões para revisar os casos e colocar o trabalho em dia. Foi assim que nasceu o regime de exceção comandado pela juíza." É prova que a rede é falha e que não existe sistema forte e capaz de impor obrigações aos poderes e órgãos envolvidos.

CASAS NADA ESPECIAIS



ZERO HORA 26 de julho de 2015 | N° 18238


VÍTIMAS DE ABRIGOS




Há pouco de esperança nos abrigos João-de-Barro e Quero-Quero, justo onde deveria estar a “derradeira oportunidade”. Na rede municipal, os dois são chamados de “Casas Especiais” pelo fato de terem sido concebidos para receber uma população diferenciada. Reúnem jovens que estão crescendo zanzando de abrigo em abrigo, muitos com histórico grave de uso de drogas, envolvimento em atos infracionais e transtornos de conduta. Não estão em regime de prisão. São adolescentes não-adotados nem colocados em novas famílias. Cresceram sob os cuidados do poder público. Ou sob a ausência deles.

O Quero-Quero funciona na frente de um movimentado ponto de tráfico de drogas, na zona sul da Capital. Todas as relações possíveis são ruins. Ou os jovens são fortemente atraídos por ganhos com a venda de drogas, ou satisfazem o vício com facilidade, ou se tornam alvo de ameaças, até de morte, por parte dos criminosos que moram do outro lado da rua.

A existência ali de um órgão público, que atrai a atenção de autoridades, não agrada aos chefes do tráfico. Vale registrar que as normas de proteção à infância ditam que os abrigos devem estar inseridos nas comunidades locais, tendo a participação de pessoas dessa população no processo educativo. O que nem sempre acontece.

Na mesma manhã de abril deste ano em que estiveram no JB, autoridades encontraram no Quero-Quero o cenário de desleixo similar.

Três adolescentes estão estirados em sofás olhando para um desenho incompreensível pela falta de qualidade na imagem da TV. Outros, jogam fla-flu na “área vip”, estimulados pelo cartaz que preconiza: “Quem acredita, sempre alcança”. Um recado cheio de significado para sujeitos de tantos direitos, tidos como prioridade de atenção absoluta de qualquer agente público. Mas será verdade?

Há adolescentes fumando, espalhados pelo pátio imenso, em meio a lixo acumulado, pedaços de móveis, colchões, fardos de papel higiênico jogados no chão. Uma funcionária explica que recém está assumindo e fala de um plano de atividades a serem ofertadas aos acolhidos. No pátio está o nome com a imagem da ave, pintado em uma parede para que ninguém esqueça que está nas dependências da casa especial Quero-Quero.

Devido a problemas com traficantes e a outras irregularidades, no dia 6 deste mês, o MP pediu que a Justiça desse prazo de cinco dias para a Fasc mudar o Quero-Quero de endereço. Na sexta, o pedido foi analisado pela Justiça e há 10 dias para a Fasc se manifestar a respeito dos pedidos.

DETALHE ZH

Para produzir essa reportagem, de dezembro a julho, ZH acompanhou o resultado das audiências realizadas pelas autoridades nos abrigos públicos de Porto Alegre.


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA
- Uma nação sem justiça é uma nação perdida" alertavam os antigos mestres chineses. É uma vergonha um país enorme e rico como o nosso não ter um sistema de proteção das crianças e adolescentes em situação de risco. Assim, jovens "com histórico grave de uso de drogas, envolvimento em atos infracionais e transtornos de conduta" que deveriam ter a proteção e os cuidados do Poder público, crescem no desleixo, na insalubridade, na ausência e na omissão do Estado, a mercê das doenças, das drogas e do crime

VÍTIMAS DE ABRIGOS



ZERO HORA 26 de julho de 2015 | N° 18238


ADRIANA IRION


Entre hoje e segunda-feira, Zero Hora retrata o descaso a que estão submetidas crianças e adolescentes que vivem em muitos dos abrigos de Porto Alegre. São jovens que, por lei, deveriam receber cuidados especiais, ser prioridade do poder público. Mas abandono, desorganização e burocracia tornam a rede de proteção falha

O joão-de-barro encanta pelos ninhos que espalha nas cidades. São moradias tão perfeitas, que, quando desabitadas, chegam a ser cobiçadas para virar enfeites residenciais. Na contramão do que a denominação deveria significar, a casa que leva o nome do pássaro, situada na zona sul de Porto Alegre, é sinônimo de desleixo, desamor, desproteção. Tudo isso em relação àqueles que, por lei, deveriam ser a prioridade absoluta dos cuidados do poder público: crianças e adolescentes.

A informação é básica, mas não custa lembrar que, quando chegam ao João-de-Barro, ao Quero-Quero ou a qualquer outro abrigo público, essas crianças e adolescentes já estiveram em situação de risco, de violência, de abusos e carências variados na própria família. São arrancados de lares duvidosos para receberem, enfim, a proteção que está sacramentada em lei – não só na Constituição Federal, mas também no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 25 anos este mês.

O que se vê, no entanto, pelo olhar de autoridades que mergulharam nesses locais nos últimos dias, meses e anos, é que as casas dos sonhos, servindo como um lar de verdade, só existem no papel. Nas normas que tratam da proteção à infância tudo funciona tão bem que o abrigo João-de-Barro (JB) até poderia encantar como o ninho do pássaro. Mas é lúgubre, feio, escuro, úmido, sujo, desorganizado, cheira mal. É triste. Numa ensolarada e fria manhã de abril, por volta das 11h, a maior parte dos jovens que estão na casa dorme em quartos fétidos. Roupas se espalham pelo banheiro imundo. Três adolescentes fazem de conta que jogam numa velha mesa de fla-flu, diante de uma despencada estante de madeira, semiquebrada e de portas abertas. Vazia. Sem livros, sem jogos. A TV berra algum programa matinal para nenhum espectador. O chão coberto de pó é forte aliado do abandono e do desleixo. A impressão só piora em direção aos fundos do imóvel.

Um banheiro está interditado há meses. O refeitório, um dos ambientes que deveriam servir para estreitar laços de quem ali reside, é pálido, com mesa e paredes brancas. Não há nada acolhedor. O pátio amplo, com piscina e árvores, mais parece um cenário de guerra, com roupas e pedaços de colchões espalhados. Há lixo. Nenhum atrativo de lazer. A piscina está imunda como sempre esteve em inspeções anteriores. Ao ver autoridades, funcionários correm a pegar vassouras. Trabalham rápido na tentativa de recuperar o irrecuperável. A constatação é óbvia: só há limpeza quando alguém fiscaliza. E como fica quem vive ali?

A empresa contratada para fazer a limpeza dos abrigos – e serviço de enfermagem – deve receber, em 2015, R$ 4,8 milhões da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). A propósito: essa empresa é a mesma que limpa prédios da Justiça. Alguém lembra de esbarrar em lixo ou de usar banheiros fétidos nos fóruns ou nos tribunais?

Ao fundo do pátio, uma simplória inscrição no muro faz lembrar que se está no João-de-Barro, uma casa especial criada em 2008 para melhorar o atendimento de uma parcela de jovens mais problemática. O nome está lá no muro, gravado a tinta. Desconectado do seu real significado, parece ser só o que restou de um projeto de remodelação de abrigos badalado pela prefeitura a partir de 2007, batizado de Figueira. Foi dele que nasceram o João-de-Barro, o Quero-Quero e os Sabiás, as casas com nomes de aves. Mais inspirador, impossível.

Quando o reordenamento da rede de abrigos de Porto Alegre foi pensado, o JB era uma das meninas dos olhos: “(...) propomos o estabelecimento de um Projeto Piloto de uma Casa de Passagem (Casa João de Barro) para adolescentes visando proporcionar a última e talvez derradeira oportunidade que muitos dos adolescentes que ingressam na rede de abrigagem terão de poder usufruir um ambiente suficientemente bom, pois os sintomas antissociais são como que uma busca, às apalpadelas, por um ambiente sadio”, diz trecho de documento da Fasc que trata do reordenamento da rede de acolhimento. Outra parte cita ensinamentos de Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês: “É necessário no tratamento de crianças e adolescentes despossuídos da vida familiar, entre outros fatores, o fornecimento de um ambiente que transmita esperança”.





COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - "Uma nação sem justiça é uma nação perdida" alertavam os antigos mestres chineses. "Uma nação que não protege suas crianças não merece ser chamada de nação" digo eu. É uma vergonha um país enorme e rico como o nosso não ter um sistema de proteção das crianças e adolescentes em situação de risco. O que temos são planos, ações e decisões isoladas, corporativas, sem continuidade e sem compromisso com a finalidade pública, e sem soluções já que caem no esquecimento e na omissão em punir o descaso, a irresponsabilidade, a negligência, a improbidade, a omissão e as graves e impunes violações de direitos humanos. parece haver uma conivência entre os Poderes e órgãos "competentes" que aceitam o estado de "abandono, desorganização e burocracia",  pois as únicas soluções que encontram é interditar e fugir das obrigações, sem apurar responsabilidade e punir que está falhando, doa a quem doer.

terça-feira, 21 de julho de 2015

A CADA DIREITO, UM DEVER



JORNAL DO COMÉRCIO 21/07/2015


Nadir Silveira Dias



As palavras trazem consigo uma marca ínsita universal. Você as vê e logo um significado aflora em sua mente. Em razão disso mesmo é que me debruço sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei nº 8.069, de 13/07/1990, e já naquela ocasião intuí que tudo ia piorar na nova lei. E não tive qualquer receio da afirmativa ao pensar sobre o Estatuto veio substituir o Código de Menores - Lei n° 6.697, de 10/10/1979.

E Código tem a genuína marca ínsita universal de dever, embora disponha sobre direitos. Estatuto - ao contrário - tem a original marca ínsita universal de direito, embora também dite regras de dever. Ora, não seria difícil concluir que um regramento que já não era bom sendo Código de Menores - marcadamente de dever - não poderia vir a ficar melhor ao ser substituído por outro com a ínsita marca de direito. Era óbvio que não poderia ser melhor que o que substituía. E o núcleo primordial é a questão ainda não aceita de que a cada direito corresponde um preciso dever.

E isso - por excelência e essencialmente - precisa ser axioma, máxima, dogma. Sem tirar nem pôr. Caso contrário, será mais um paradoxo a solver, pois se existir direito sem dever isso será um abuso em relação a quem não tem o direito. E se for só dever - se existir só o dever - será uma tirania em relação a quem não tem esse dever. No entanto, importante notar que o Estatuto da Criança e do Adolescente é melhor que o Código de Menores que substituiu. Mas então por que os seus resultados são tão modestos? Ou tão piores? Não será por causa do princípio de autoridade desfalcado, reduzido ou inexistente que tudo caminhe para o descalabro, familiar, social, econômico, político e existencial?

A quem duvide, basta consultar os números de 1990 e os de agora. E para quem não goste de números é só lembrar-se das crianças moradoras de rua de 1990 e ver a olhos nus as existentes agora. Você ainda duvidará de que o Código de Menores era melhor do que o atual e vigente Estatuto da Criança e do Adolescente?

Jurista, escritor e jornalista


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Muito bem colocado. Realço a indagação - "No entanto, importante notar que o Estatuto da Criança e do Adolescente é melhor que o Código de Menores que substituiu. Mas então por que os seus resultados são tão modestos? Ou tão piores? Não será por causa do princípio de autoridade desfalcado, reduzido ou inexistente que tudo caminhe para o descalabro, familiar, social, econômico, político e existencial?" Na minha opinião, faltou o mais importante, a leniência judicial, pois é no dever de exercer a função da aplicação coativa da lei que se pode garantir direitos e apurar responsabilidades nas falhas.

sábado, 18 de julho de 2015

ESCOLAS DO CRIME TAMBÉM NOS CENTROS DE INTERNAÇÃO DE MENORES


Escolas do crime': quase todos os centros de internação de menores têm problemas. Levantamento de VEJA em dezessete capitais mostra que 85% dos centros socioeducativos são alvo de alguma medida de adequação a pedido do Ministério Público

VEJA ONLINE Por: Kalleo Coura18/07/2015



Menores da Fundação Casa (antiga Febem) (VEJA.com/Estadão Conteúdo)

Na virada de quinta para sexta-feira da semana passada, um dos quatro adolescentes que estupraram e assassinaram uma garota de 17 anos no interior do Piauí -- outras três meninas, submetidas às mesmas sevícias, sobreviveram -- foi brutalmente assassinado por seus comparsas. Os quatro estavam internados em um centro socioeducativo na capital do estado, Teresina, o que levantou questões sobre as condições desses locais para manter jovens criminosos.

Um levantamento de VEJA nas capitais de 17 dos 26 estados brasileiros mostra que a situação é crítica. De 94 centros de internação nessas cidades, 79 são alvos de medidas de adequação do Ministério Público. São problemas que vão desde falta de vagas ou de aulas de ensino até questões mais graves, como condições insalubres de higiene, insegurança e superlotação grave.

Em São Paulo, que responde por pouco mais de um terço desses centros, a situação ainda é um pouco melhor do que no restante do país. Todos os 37 locais precisam de alguma adequação, mas apenas dois estão sob ameaça de interdição. No restante do país, de cada dez centros de internação, quatro já foram interditados pela Justiça ou estão sob ameaça dessa medida.

"Nestes locais, alguns jovens não estudam sequer uma hora de aula por semana e, possivelmente, os de melhor comportamento são selecionados para as aulas. Por causa da superlotação, há até caso de sala de aula transformada em dormitório", critica o promotor Luciano Tonet, da vara da infância da e da juventude do Ceará, onde três centros estão parcialmente interditados.

A maioria das instituições no Brasil não tem nenhum projeto pedagógico, não fornece aulas regulares e não tem qualquer oficina profissionalizante. Quando o Conselho Nacional de Justiça inspecionou os centros de Maceió há dois anos, as aulas ocorriam de uma a duas vezes por semana, quando tanto. "Tudo é executado de forma muito amadora", diz a juíza Marina Gurgel, que integrou o CNJ.

A questão se torna ainda mais grave diante da possibilidade de que os jovens criminosos passem até dez anos dentro dessas instituições, ao contrário dos atuais três anos de prazo máximo. A medida, aprovada na semana passada no Senado Federal, ainda precisa passar na Câmara e ser sancionada pela presidente Dilma Rousseff, mas é um passo importante para adequar a legislação brasileira, uma das mais lenientes do mundo com infratores menores de idade.

As condições precárias dos centros socioeducativos acabam sendo ainda mais perniciosas do que as péssimas condições das prisões quando se considera que os jovens têm maior capacidade de recuperação, dizem especialistas. "Jovens infratores são diferentes de criminosos adultos. Há um período na adolescência em que os jovens têm maior propensão a tomar decisões precipitadas e menor capacidade de olhar para o futuro quando em situações emocionais extremas. Isso indica que alguns deles se envolvem em crimes não porque tem um caráter depravado, mas, em parte, porque são adolescentes", diz o psiquiatra americano Edward Mulvey, que acompanhou a carreira criminosa de mais de 1 300 jovens infratores ao longo de sete anos.

Essa característica não isenta os jovens de seus crimes, pelo contrário. Mas apenas com centros de internação adequados eles poderão sair de lá melhores do que entraram, e não piores. As prisões brasileiras, que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já comparou a "masmorras medievais", são verdadeiras "universidades do crime". Os centros socioeducativos precisam melhorar muito, para não se tornar "escolas do crime".


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - O argumento mais usado na defesa contra a redução da maioridade penal são as "escolas do crime" e as condições desumanas nos presídios para adultos. Só que estas "escolas do crime" e as condições desumanas se assemelham em menor proporção nas unidades de internação ditas "socioeducativas". Cai por terra um argumento que todos conhecem, mas não são capazes de apurar responsabilidade e punir os culpados.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

DENTRO E FORA DA ESCOLA



ZERO HORA 15 de julho de 2015 | N° 18227

ALCY CHEUICHE


Diante de mim, 400 adolescentes de uma escola pública. Todos esperando que eu fale sobre a arte da palavra escrita. Mas só consigo pensar na frase que me domina a mente: um de vocês pode levar uma facada no coração.

Patético? E daí? Digo a frase e, de forma literária, o silêncio pode ser ouvido do outro lado da rua.

Então, exponho a realidade claramente. A diferença brutal entre os jovens que estão dentro e os que estão fora da escola. Os que estão dentro, protegidos, mal ou bem, pelos pais, professores, colegas, e pela polícia. Os que estão fora, condenados, desde crianças, ao papel de trombadinhas, ladrões, traficantes e assassinos.

A polícia desconfia que o jovem da faca seja um morador de rua das cercanias da escola. Pode ser. E o que fazemos, como governo, principalmente, para dar uma nova oportunidade de vida aos miseráveis que moram debaixo das pontes do Dilúvio? Pontes, que pontes? Mais fácil construir uma nova, e muito cara, para atravessar o Guaíba.

Digo isso e os alunos entendem. Agora preciso que entendam sobre o mais importante de tudo. O privilégio de estarem do lado de dentro da escola. É quando tiro do bolso a cópia do e-mail que recebi do Amadeu Weinmann. E conto a pequena história que ele nos pediu para contar nas escolas. Uma parábola real sobre a professora que foi processada pela mãe de um aluno porque não o deixou usar o telefone celular, em aula, para ouvir música com fones de ouvido. A sentença do juiz de Direito Eliezer Siqueira de Sousa Junior, da 1ª Vara Cível e Criminal de Tobias Barreto, no interior de Sergipe, que negou o pedido de indenização, foi a seguinte, em sua essência: julgar procedente esta demanda seria desferir uma bofetada nos professores, reserva moral e educacional deste país.

Infelizmente, nem todos os que têm poder de decisão pensam assim. As mesmas autoridades, em todos os níveis, que juraram respeitar a Constituição da República Federativa do Brasil ignoram que todos somos iguais perante a lei. E nunca investem realmente nos mais desprotegidos e nos que os protegem; na prioridade de criar novos cidadãos brasileiros. Os mesmos que lhe negaram a caneta, lá na infância, queiram ou não queiram, ajudaram a colocar a faca na mão daquele marginal.

*Escritor

terça-feira, 14 de julho de 2015

CENTROS DE ATENDIMENTO PARA JOVENS

DIÁRIO GAÚCHO 14/07/2015 | 05h03

Carlos Ismael Moreira e Eduardo Torres


Jovens só terão centros de atendimento em 2017. Programa do governo do Estado prevê criação de seis unidades com estrutura de atendimento para crianças e adolescentes, mas inauguração ainda deve demorar dois anos



Foto: Reprodução / Reprodução




No mês em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 25 anos, a previsão para motivos de comemoração no Rio Grande do Sul ainda terá de esperar pelo menos dois anos. A intenção do Estado para tentar barrar a escalada de violência contra jovens existe. Mas o planejamento do governo, que começa a ser esboçado no papel, só deve se tornar concreto em 2017. Até lá, será preciso conviver com a carência de medidas práticas para evitar a progressão no número de homicídios de meninos e meninas com menos de 18 anos.

Levantamento produzido durante dois meses por Diário Gaúcho e Zero Hora revelou que 50 jovens foram assassinados antes de chegar à maioridade na Capital e em 11 cidades da Região Metropolitana em 2015. Destes, 40% foram vítimas de acerto de contas do tráfico de drogas, enquanto 36% morreram sem ser os alvos dos matadores. Quase totalidade era moradora de áreas periféricas e integrante de famílias pobres.

Titular da Secretaria da Justiça e Direitos Humanos (SJDH) do Estado, César Luís de Araújo Faccioli garante que o enfrentamento e a prevenção da violência contra a juventude é uma prioridades da pasta, com ao menos três projetos específicos para este público.

– Concordamos com a gravidade dessa situação, a vulnerabilidade da juventude, especialmente o jovem da periferia e negro. Nos demonstra que estamos no caminho certo, que essa deva ser a prioridade, não desse governo, mas do Estado, para mudar esse cenário que é absolutamente alarmante – comentou Faccioli.

US$ 56 milhões serão investidos

Entre as ações da pasta, o secretário destaca o Programa de Oportunidades e Direitos (POD) da Juventude, que prevê a criação de seis centros de atenção a crianças e adolescentes – quatro em Porto Alegre e outros dois em Viamão e Alvorada, em áreas com maior índice de vulnerabilidade. Eles fazem parte de um convênio de US$ 56 milhões firmado em dezembro de 2014 com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Até agora, apenas uma parcela de US$ 9 milhões foi aplicada, e o projeto segue em fase de planejamento.

– Nossa previsão é de que o primeiro centro seja entregue em 2017, na Capital, e ambicionamos também concluir o segundo em Viamão, cujo protocolo de intenções (com a prefeitura) será assinado essa semana – afirma o secretário.

Enquanto isso, segundo Faccioli, a SJDH está concluindo o mapeamento situacional de violência, com as demais secretarias envolvidas, com objetivo de identificar as potencialidades dos serviços que já existem. O objetivo é organizar um fluxo que, segundo o secretário, ainda é bastante “deficitário”.

O investimento

Convênio assinado em dezembro do ano passado prevê investimento de US$ 56 milhões.

44% do valor será aplicado na construção de três novas unidades da Fase. A primeira, em Osório, deve ser construída a partir de dezembro.

33% será aplicado em projetos de prevenção à violência. As construções dos centros POD entram nessa fatia. Projetos estão em fase de busca de áreas para as construções.

11% será aplicado na efetividade policial, com investimentos em polícia comunitária.

6% será aplicado na criação do Observatório da Juventude, com a produção de indicadores próprios da violência nessa faixa etária.

6% é aplicado na fase de planejamento.

Violência sepultou Territórios da Paz

Desde 2011, quando o Diário Gaúcho começou a acompanhar os homicídios na Região Metropolitana, o volume de vítimas com menos de 18 anos nunca foi tão grande. Nos primeiros cinco meses daquele ano foram 27 crianças e adolescentes assassinados. Na época, já com o desafio principal de frear crimes contra jovens, o governo estadual lançou o programa Territórios da Paz.

O financiamento do BID para implantação do Programa de Oportunidades (POD) da Juventude era o grande trunfo para que o projeto decolasse. O projeto, porém, ficou no papel, e os resultados não saíram do chão. O programa está praticamente paralisado e, em 2014, os homicídios – inclusive nos bairros escolhidos como prioritários – bateram recorde.

– Era uma demora já esperada, porque precisamos adaptar um projeto que começou a ser criado em 2011. Muita coisa precisou ser adaptada – explica o coordenador do POD, Aldo Peres.

A primeira unidade construída será no bairro Rubem Berta, na estrutura já existente do Centro Vida, com área de 72 hectares. A ideia dos centros é ser um aglutinador de oficinas, atendimentos sociais e psicológicos, além de esportes e lazer, para jovens de toda região. O secretário Faccioli ressalta ainda a importância da emancipação dos adolescentes para o mercado de trabalho e a instalação de núcleos de policiamento comunitário próximos dos centros do POD.

– Esse novo conceito é para mudar a relação das populações vulneráveis, especialmente o jovem de periferia, com o policial. Sem a construção desse vínculo entre a comunidade e sua polícia, pouco se poderá fazer para a redução da violência – afirma Faccioli, acrescentando que a Secretaria da Segurança Pública também está empenhada nesse propósito.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Paulo Pimenta (PT-RS), classificou como “alarmantes” os números apresentados pela reportagem e disse que os dados serão objeto de um “pente-fino” dos parlamentares. O deputado também pretende incluir os homicídios gaúchos nas apurações da CPI da Violência contra Jovens Negros e Pobres, em andamento na Câmara.

– Precisamos de uma política social mais forte e efetiva, que ofereça lazer, esporte, formação de jovem aprendiz. Só cadeia não resolve a situação – argumenta o deputado.


O que diz Wantuir Jacini, secretário de Segurança Pública - Em nota, disse que o tráfico de entorpecentes é o principal motivador dos homicídios no RS. Entre as principais ações desenvolvidas estão as operações da Brigada Militar e da Polícia Civil, que, neste ano, já resultaram na apreensão de mais de cinco toneladas de drogas, 3 mil armas, afetando a rotina do crime, principalmente na região metropolitana de Porto Alegre e no Vale do Sinos.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

GERAÇÃO ASSASSINADA

ZERO HORA 13/07/2015

Mortes de jovens aumentam 61% na Capital e Região Metropolitana. Levantamento dos primeiros cinco meses de 2015 foi feito por Zero Hora e Diário Gaúcho

Por: Carlos Ismael Moreira e Eduardo Torres




A cada três dias, um jovem é executado antes de chegar à maioridade Foto: Reprodução / Reprodução

Cinquenta crianças e adolescentes foram mortos na Capital e na Região Metropolitana nos cinco primeiros meses de 2015. Durante dois meses, investigação conjunta de Zero Hora e Diário Gaúcho apurou, que, a cada três dias, um jovem é executado antes de chegar à maioridade.

No dia 1º de janeiro, Michael Wesley Cacildo Alves, 16 anos, foi baleado e ainda atropelado na Avenida Doutor João Dentice, no bairro Restinga, em Porto Alegre. Foi também a primeira morte de adolescente em 2015. Por dois meses, repórteres de Zero Hora e Diário Gaúcho percorreram as delegacias responsáveis pela investigação de homicídios na Capital e em 11 cidades da Região Metropolitana fazendo o levantamento dos assassinatos de adolescentes e crianças.


O resultado mostra que, nos primeiros cinco meses do ano, pelo menos 50 crianças e adolescentes foram assassinados na região. Um aumento de 61,2% em relação às 31 vítimas contabilizadas pela reportagem no mesmo período de 2014. Significa dizer que, a cada três dias, pelo menos um jovem é morto antes de chegar à maioridade.


Michael estudava, vivia com a mãe e a irmã e nunca teve envolvimento com a criminalidade. Foi morto, segundo apurou a polícia, simplesmente por ter cruzado o caminho de integrantes de uma das gangues que atuam no bairro. Junta-se ao grupo de 62% das vítimas que não tinham antecedentes. Entre as que já tinham passagem policial, o tráfico é o maior motivo dos assassinatos (40%).

– É um dado preocupante, mas só confirma uma realidade que constatamos em todos os homicídios na região. Temos áreas conflagradas, e o tráfico, de um modo geral, é o pano de fundo desses crimes. Mesmo aquele jovem que não tem antecedentes ou envolvimento com o crime, acaba morto por ser amigo de alguém ou por estar realmente no lugar errado, onde acontecem esses confrontos – diz o diretor do Departamento de Homicídios de Porto Alegre, delegado Paulo Grillo.


Pelo menos 80% das vítimas foram mortas em bairros periféricos ou conflagrados pelo tráfico na Região Metropolitana. Quase todos a menos de 500 metros de casa. A faixa etária entre os 16 e 17 anos é a mais vulnerável nessa estatística. Foram 28 mortos (56%) no limite da adolescência. Entre as cidades da região que registraram assassinatos de crianças e adolescentes nos cinco primeiros meses do ano, Porto Alegre aparece em primeiro lugar – foram 17 casos.

Restinga, o bairro mais violento

Na Região Metropolitana, o bairro Restinga, na zona sul da Capital, é a área mais crítica para jovens com menos de 18 anos. Foram pelo menos cinco vítimas que não chegaram à maioridade neste ano. Em média, acontecem pelo menos dois tiroteios por semana na Restinga. Nos primeiros cinco meses do ano, a Brigada Militar apreendeu mais de 50 armas no bairro.

Levantamento da própria BM demonstra que há mais de 20 quadrilhas em constante disputa por território. Todas têm adolescentes entre seus integrantes. Isso não significa que só os envolvidos com a bandidagem se tornam vítimas. Ao contrário, conforme os inquéritos policiais, três dos cinco mortos no bairro este ano não tinham qualquer envolvimento com a criminalidade.

O assessor pedagógico Gustavo Gobbo, um dos líderes do Centro de Promoção da Infância e da Juventude (CPIJ), que atende, somente no bairro, mais de mil crianças em situação de vulnerabilidade, diz que a violência se tornou parte da rotina das crianças.

– Cada vez que há tiros, se torna o assunto deles. Já tivemos casos de crianças impedidas de chegar até a instituição porque estão ameaçadas se circularem por uma certa região do bairro – diz.

O esforço, ali, segundo ele, é mostrar que o mundo vai além daquela esquina onde eventualmente algum daqueles meninos pode ser considerado o patrão da vez. Foi na frase pintada em um muro que Gustavo encontrou o resumo da realidade dos jovens na Restinga: "Onde não há palco, a violência vira show."

36% DAS VÍTIMAS NÃO ERAM ALVOS


A parcela de crianças e adolescentes inocentes mortos em Porto Alegre e 11 cidades da Região Metropolitana é alarmante: 36% desses jovens foram assassinados sem serem o alvo dos matadores. Ou seja, 18 jovens morreram de graça. Vitimadas por um vínculo familiar, uma amizade, e até mesmo sem nenhuma razão que os ligasse a conflitos de criminosos.

Titular da Delegacia de Homicídios de Canoas, o delegado Tiago Baldin chama a atenção para a constatação do levantamento de que a maioria das vítimas foi assassinada próximo de suas casas e até nos locais onde moravam.

– Os criminosos costumam ir atrás de seus alvos na área deles, e isso leva perigo aos que estão por perto. Em muitos casos, a falta de estrutura da família expõe os menores ao risco – avalia.

Para o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, o alto índice de crianças e adolescentes assassinados mesmo sem qualquer relação com o crime não gera alerta porque a sociedade tem encarado mortes nesse perfil – jovens de famílias carentes e moradores de periferia – como algo comum.

– Não causa nenhuma pressão social porque houve uma certa naturalização desses homicídios. Como as vítimas são pobres e moram em áreas conflagradas, as pessoas acham: “Bom, são pessoas envolvidas com a criminalidade”– analisa.

Para o professor, que é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em muitos casos, as próprias autoridades promovem a naturalização de mortes no perfil de vítima identificado pela reportagem:

– Secretários de Segurança, chefes de polícia, comandantes, têm utilizado esse discurso (das áreas conflagradas) como uma justificativa para a precariedade de estrutura e para sua incapacidade de produzir resultados melhores – afirma Azevedo.


38% COM FICHA CRIMINAL

Segundo o levantamento da reportagem, 40% dos assassinatos de crianças e adolescentes nos primeiros cinco meses do ano tiveram o tráfico ou acerto de contas como motivação. Do total de jovens mortos, 38% tinham antecedentes criminais.

– É difícil mensurar a relação do crack com a presença maior de adolescentes no tráfico. O fato é que essa droga provocou um crescimento expressivo de bocas de fumo na região – diz o diretor do Denarc, delegado Emerson Wendt.

Nenhuma dessas vítimas era nascida em 1994, quando aconteceu a primeira apreensão de crack no Rio Grande do Sul, em Caxias do Sul, na Serra.

Três anos depois, a barreira para entrada da droga na Região Metropolitana – que até então era blindada pelos líderes do tráfico local, pelo potencial destruidor do crack – foi quebrada. Há 18 anos, foi encontrado o primeiro laboratório de crack em São Leopoldo, no Vale do Sinos.

Segundo Wendt, os mais jovens se tornam facilmente parte da engrenagem perversa do crime.

– Quem comanda, quer se livrar da punição. Então, estimula um falso poder entre os adolescentes, que se tornam os alvos de apreensões e de acertos do crime – explica.

Para que se tenha uma ideia, em 2005, 24 adolescentes estavam apreendidos na Fase por envolvimento com o tráfico. No começo deste ano, eram 185.

BAIXA RESOLUÇÃO DE HOMICÍDIOS

Estima-se que 5% a 8% são as taxas de resolução de homicídios no país, segundo estudo mais recente da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp). Para o coordenador da Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, o que também contribui para a baixa taxa de esclarecimento dos assassinatos no país é a lentidão dos processos no Judiciário, o que resulta em sensação de impunidade.

– Uma pesquisa contratada pelo Ministério da Justiça em oito capitais brasileiras mostrou que o tempo médio de tramitação de um acusado de homicídio é de oito anos. Nada justifica uma demora neste nível – critica o pesquisador.

10 MORTES POR DIA

Na semana passada, enquanto o Congresso votava a redução da maioridade penal, um estudo do sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz mostrou que, em 2013, 3.749 jovens entre 16 e 17 anos foram vítimas de homicídios no país. Uma média de 10 mortos por dia. E a perspectiva para este ano não é nada animadora. A projeção é de 3.816 em todo o país.

– Quando há aumento generalizado de homicídios, os jovens acabam sendo um alvo natural. Eles estão mais nas ruas, têm a necessidade de ocupar o seu espaço e ter algum protagonismo. Sem investimentos em espaços culturais e de lazer para transformar esses lugares, não vamos reverter essa realidade – alerta Gustavo Gobbo.

Nos primeiros cinco meses do ano, quatro jovens com menos de 18 anos foram assassinados no bairro Mathias Velho, em Canoas. A exemplo do bairro Restinga, da zona sul da Capital, também fazia parte dos Territórios da Paz até o final do ano passado. Mas, ali, o projeto foi sepultado com a troca no comando do Estado. E a realidade violenta se viu ainda mais reforçada.

– O Mathias Velho fica em uma região bastante acessível, com uma realidade própria e histórica. Diversas quadrilhas se originaram ali e continuam se reforçando a partir dos mais jovens. Ampliamos abordagens e mapeamos esses grupos – afirma o comandante do 15º BPM, tenente-coronel Oto Amorim.

46% NÃO ESTUDAM

No levantamento da reportagem, um dado revela parte da realidade em que viviam as crianças e adolescentes assassinados na Capital e em outras 11 cidades da Região da Metropolitana: a evasão escolar. Entre as vítimas, 23 (46%) não estavam estudando. Os números comprovam as dificuldades da escola em superar a aridez de violência que cerca adolescentes e crianças. Em regiões onde o crime e o tráfico dominam, e a ausência de um núcleo familiar estruturado faz parte do cotidiano, as instituições de ensino também acabam reféns da violência.

Em abril do ano passado, o acirramento de um conflito entre gangues provocou um toque de recolher na Vila Cruzeiro, no bairro Santa Tereza, na zona sul da Capital, que obrigou três escolas a fecharem a portas. Em novembro, situação semelhante ocorreu no Loteamento Timbaúva, no bairro Mario Quintana, zona norte de Porto Alegre, quando uma instituição de ensino municipal também cancelou as aulas depois de uma ameaça de tiroteio.

ESCOLAS REPRESENTAM ESPAÇO DE PROTEÇÃO


Além disso, professores e educadores também precisam lutar contra o assédio dos traficantes, que buscam alistar “soldados” cada vez mais jovens.

– Muitos vão para a escola porque a casa é um tormento. Porque o pai bate na mãe ou é alcoólatra, a mãe não tem trabalho ou está doente, às vezes não há comida. Então, o guri vai onde estão os amigos e a professora, que mais ou menos ajuda com alguma orientação. Por isso, para evitar a delinquência e mais morte dos jovens, a escola como espaço de sociabilidade tem que ser ainda mais privilegiada – analisa o professor Carlos Gadea, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos.

Para Joice Lopes da Silva, assistente social e coordenadora-adjunta da equipe de Assessoria Técnica e Articulação em Redes, da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, as escolas também representam um espaço de proteção. – Muitas vezes os adolescentes passam o dia na escola por conta de que outros cuidadores da família se ausentam. Ali, ele encontra o adulto que vai cuidar dele durante aquele dia e olhá-lo de forma diferenciada – avalia Joice, ressaltando que as famílias também são vítimas do cenário de vulnerabilidade em que se encontram.

sábado, 11 de julho de 2015

PROIBIDAS DE SEREM MULHERES

REVISTA ISTO É N° Edição: 2380 | 10.Jul.15


O primeiro retrato já feito no País sobre as adolescentes presas revela que, no dia a dia, elas são privadas de usufruir de itens ligados à feminilidade, como maquiagem, e até de absorventes higiênicos. Têm menos visitas íntimas e são mais abandonadas

Fabíola Perez



Distraída com um pedaço de tecido e uma agulha nas mãos, S. B., 17 anos, borda seu nome enquanto espera o dia passar. Sentada nas escadas que levam à quadra de esportes da unidade socioeducativa Chiquinha Gonzaga, em São Paulo, a menina de riso fácil está presa há oito meses por roubo e tráfico de drogas. O corpo magro e miúdo se esconde atrás do moletom azul marinho. S. é uma das poucas internas que usa o cabelo solto. Os fios cacheados levemente caídos sobre o rosto roubam um pouco de sua concentração. A jovem interrompe o bordado cada vez que se lembra como era a vida no tráfico. O silêncio e a expressão cabisbaixa, no entanto, vêm quando fala da família. “Minha mãe nunca veio me visitar.” O maior medo da garota é que seu filho, G. L. C., de um ano, não a reconheça mais. “Estou perdendo o começo da vida dele e não sei quando vou embora daqui”, diz. “Meus avós trazem ele todo domingo, mas ele não me reconhece, então entrego na mão de Deus.”


INTERNA
B.F.S., 15 anos, está há quase um ano na unidade Chiquinha Gonzaga,
em São Paulo, por roubo e tráfico de drogas. Uma de suas
formas de matar o tempo é bordar

S. é uma das 578 meninas que cumprem medida socioeducativa nas unidades de todo o País destinadas às adolescentes e que, de forma geral, compartilham a mesma realidade: por causa da absoluta falta de atenção às necessidades femininas, as garotas hoje encarceradas no Brasil são proibidas de serem mulheres e, ao mesmo tempo, recebem punições extras - não dadas aos meninos - exatamente por isso. Esta é a principal conclusão que se tira a partir da interpretação da pesquisa “Dos espaços aos direitos – A realidade da ressocialização na aplicação das medidas socioeducativas de internação das adolescentes do sexo feminino em conflito com a lei nas cinco regiões”, coordenada pela advogada Marília Montenegro Pessoa de Melo, professora da Universidade Católica de Pernambuco. Realizado nos estados de São Paulo, Pernambuco, Pará, Distrito Federal e Rio Grande do Sul, o levantamento foi encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça e é o primeiro retrato obtido no País sobre as condições da internação das jovens brasileiras. “O confinamento para as mulheres é feito em sistemas pensados a partir da lógica masculina”, afirma Marília.

O primeiro impacto deste equívoco é o sistemático ataque à feminilidade. Na maioria das unidades avaliadas, não há espelhos – caso das instalações de Pernambuco, do Pará e do Distrito Federal. No sistema prisional, esse item é proibido. Trata-se de uma questão polêmica. Há especialistas que defendem a proibição, uma vez que podem facilmente ser transformados em armas ou serem usados por elas contras elas próprias. Mas há quem sustente que isso vale para as presas adultas, e não para as adolescentes. “Essas meninas podem passar até três anos sem se ver. Isso prejudica demais a autoestima”, diz Marília. A solução seria oferecer espelhos de plásticos, como os fornecidos em São Paulo. No Rio Grande do Sul, estão sendo oferecidos espelhos de vidro.


ROTINA
Na mesma instituição, menor se encarrega da faxina enquanto cuida do filho.
É o único espaço do país destinado a abrigar mães e filhos

Faltam às meninas outros itens fundamentais para a construção de uma identidade feminina. Batons, esmaltes e perfumes só são autorizados em dias especiais, batizados de “dias da beleza”. Nas unidades nas quais elas usam uniforme, a roupa é padronizada (camiseta e calça e blusa de moletom). É igual a dos meninos. Ou seja, passa longe de um corte mais feminino. “Nada que individualize as meninas é permitido. Em vários centros, até o elástico de cabelo é igual”, critica a pesquisadora.

As conseqüências de serem privadas de algo tão importante para as mulheres – o cultivo da imagem, da vaidade – são devastadoras. “Seis meses depois, elas perdem as características femininas e vão se masculinizando”, observa a advogada. “Emagrecem, seu cabelo se deteriora e elas perdem seu lado mais emotivo.” Algumas vezes, o processo muda a orientação sexual. “É o homossexualismo temporário. Elas se envolvem com outras meninas durante a internação”, diz Berenice Gianella, presidente da Fundação Casa, de São Paulo, responsável pelas unidades destinadas às jovens no estado.



O exercício da sexualidade também sofre restrições em intensidade maior do que as impostas aos meninos. A pesquisa apontou que em nenhuma unidade as jovens estavam autorizadas a receber seus parceiros, mesmo nos casos em que a garota possuía união estável. “É uma violação à sexualidade, como se houvesse um ônus por ser mulher”, diz Marília. O direito à visita íntima – para homens e mulheres – é concedido após avaliação por um juiz e considerado parte do processo de ressocialização. “A Justiça costuma ser mais rigorosa com as meninas”, conta Gisleine Silva, assistente social da unidade Chiquinha Gonzaga.

Também praticamente não há espaço para o desfrute da maternidade. A unidade Chiquinha Gonzaga é a única que conta com um espaço físico para abrigar gestantes e mães que acabaram de dar à luz, o Programa de Acompanhamento Materno-Infantil (Pami). Lá, G. C., 15 anos, por enquanto consegue cuidar do filho nascido há cerca de quinze dias. Há sete meses no lugar, a menina não gosta de falar sobre o que a levou à unidade. Diz apenas que está arrependida. “Parei de escutar os conselhos dos meus pais, fiquei suscetível às influências dos amigos e do namorado e a partir daí minha falta de cuidado me trouxe para cá. Agora não dá para mudar o passado.”

A ausência de um olhar especial para as peculiaridades femininas chega muitas vezes ao extremo de não dar às garotas absorventes higiênicos quando estão menstruadas. É o que ocorre na unidade de Santa Maria, no Distrito Federal, que não oferece o item por falta de previsão orçamentária. A diretoria da unidade diz que tenta reverter a situação. “O básico que eles oferecem de higiene é papel higiênico, pasta, sabonete e só”, diz uma das garotas ouvidas pela pesquisa. O restante dos produtos pode ser levado por familiares.


SOLIDÃO
A palavra tatuada no braço acaba sendo uma lembrança dolorosa do abandono
do qual as meninas são vítimas. as garotas quase não recebem visitas de familiares

Ao mesmo tempo, as meninas também acabam sendo vítimas de estigmas que ainda persistem em relação às mulheres. Nas unidades destinadas aos garotos, eles não são obrigados a fazer faxina em todas as dependências das unidades. As meninas são. De acordo com o estudo, no Pará, Rio Grande do Sul e Pernambuco, as garotas relatam que fazem a limpeza em tudo, sob pena de cumprir sanções disciplinares. “Elas limpam dormitórios, salas e até as diretorias”, afirma Marília. O abandono familiar também atinge mais as jovens do que os garotos. “Elas recebem poucas visitas. Há uma decepção maior dos familiares, como se as garotas tivessem rompido com um padrão esperado de boa moça”, diz a advogada. O esquecimento também vem dos parceiros. “Os companheiros não estão dispostos a enfrentar as dificuldades impostas às visitas”, diz Berenice Gianella.

Em geral, as garotas atuam em papéis secundários no crime. De acordo com o levantamento, o tráfico de drogas é o delito mais recorrente entre os motivos que levam ao encarceramento. É o caso das menores S.B., 17 anos, e de B. F. S., de 15 anos, internadas na unidade Chiquinha Gonzaga, em São Paulo. S. está internada há oito meses. “Chegava a tirar de R$ 3 mil a R$ 4 mil toda sexta-feira no tráfico.” B. F. S. há quase um ano. “Minha mãe traficava quando eu era pequena. Eu comecei no tráfico com um amigo do meu irmão. O dinheiro vinha fácil, que nem água. Depois comecei a roubar casas e carros”, diz B. também entretida com o bordado de seu nome. Em boa parte das unidades avaliadas, pouco se oferece de novos caminhos às meninas. Sobretudo nos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, as atividades profissionalizantes são precárias e as garotas passam a maior parte do tempo sem fazer nada. “Elas costumam dizer: ‘eles não esperam de mim grande coisa. Se eu souber fazer bem uma faxina, uma unha está bom’”, relata Marília.



Fotos: João Castellano/ AG. Istoé