terça-feira, 19 de junho de 2012

UM DRAMA SOCIAL EM OITO ATOS




FILHO DA RUA. Um drama social em oito atos - ZERO HORA 19/06/2012

A discussão sobre o problema dos meninos de rua mobilizou ontem especialistas em um estúdio da RBS TV, em Porto Alegre, e milhares de interessados por todo o Estado. Enquanto o pequeno grupo de autoridades e profissionais da área participava de um Painel RBS especial, a sociedade se manifestava por meio de centenas de e-mails e comentários no site do jornal sobre a reportagem Filho da Rua, publicada por Zero Hora no domingo.

Nestas páginas, ZH promove o encontro dessas duas visões, reunidas sob oito tópicos, eleitos a partir de um programa de computador ao qual foram submetidas as mensagens de leitores. O software contabilizou os termos mais utilizados. A contagem ajuda a enxergar as maiores preocupações da sociedade em relação ao drama dos meninos que vagam por esquinas.

O Painel RBS realizado na manhã de ontem e as manifestações de leitores são consequência de um trabalho jornalístico que se estendeu por três anos. Durante esse período, a repórter Letícia Duarte e o fotógrafo Jefferson Botega investigaram e documentaram a trajetória de Felipe*, um adolescente de 14 anos que há quase uma década vive pelas ruas da Capital, consumindo drogas, sofrendo violências e praticando furtos. O resultado da apuração foi publicado em um caderno de 16 páginas.

Confira os oito dos temas mais citados, as manifestações de leitores e as análises feitas pelos convidados do Painel RBS.

*Nome fictício para preservar a identidade do menino, conforme determina o Estatuto da Criança e do Adolescente

I - Família

A família do garoto Felipe, personagem da matéria de ZH, ajuda a explicar por que ele se tornou um menino de rua. O pai, alcoólatra e violento, foi embora. A mãe decidiu não usar contraceptivos e teve seis filhos. Nunca soube como colocar limites nos meninos.

Segundo os participantes do painel, é necessário dar apoio a lares desestruturados como esse.

– O primeiro passo é fortalecer a família, criando condições socioeconômicas melhores. A rua atrai porque oferece mais do que se tem em casa – observou o psicólogo Lucas Neiva-Silva.

A questão é apoiar, e não punir a família, defendeu Marcelo Dornelles, subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais do Ministério Público, que enfatizou:

– A situação de desestruturação da família de Felipe inclui crack, violência doméstica, álcool e extrema pobreza. Vai responsabilizar a quem nessa família? Passa longe da punição. Passa pelos programas e pelo atendimento, que no caso falharam.

“A reportagem nos mostra que os governos têm políticas ineficazes para essas situações. A família é outro fator, talvez o principal, para que isto aconteça. O próprio menino diz que, se tivesse levado umas palmadas e a companhia do pai, isto talvez fosse diferente.”

Clenio G. Dias

II - Responsabilidade

O psicólogo Lucas Neiva-Silva observou que, se o filho dele for para a rua, ele irá atrás, porque se sente responsável. Na opinião do pesquisador, falta essa mesma postura da rede de atendimento.

– Essa é uma das grandes lacunas. Se a criança foge do abrigo, falta alguém dizer: “Eu sou responsável e você não vai ficar na rua”. Temos de alcançar esse nível de intervenção.

“Sou a favor da maternidade responsável. Para que as crianças possam ser crianças. E para que não prefiram a rua à própria casa, independentemente do tipo de casa que tenham. Ser mulher não significa ter de ser mãe. Ser pobre não é o mesmo que ser ignorante. E ter responsabilidade não depende de situação financeira favorável. 14 anos. É a idade que esse menino tem hoje. Anos demais de fome, de abandono, de algumas drogas e possíveis infrações penais. Anos de menos para assumir uma vida que ninguém deveria ter.”

Amanda Melo

III - Governo

A rede de serviços públicos falhou com Felipe. Em momentos decisivos, houve burocratização e falta de diálogo entre diferentes instâncias da rede de apoio, deixando o menino sem o auxílio necessário. Júlia Obst, da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), reconheceu as falhas.

– A burocracia não é para existir. Estamos descentralizados em 13 equipes territorializadas, desde 2007, para melhorar o atendimento. As equipes estão trabalhando desde a primeira saída da criança à rua, fazendo mapeamentos e estudando os territórios. É muito difícil ter um menino que não seja conhecido pelos profissionais – afirmou.

Houve um reconhecimento, durante o debate, de que a estrutura de atendimento precisa melhorar. Uma das ideias levantadas é estabelecer maior articulação entre diferentes serviços. Também se ressaltou a necessidade da oferta de educação infantil, de serviços de saúde da família e de equipamentos que ofereçam alternativas de lazer nas comunidades.

O menino de rua (cujos passos Zero Hora acompanhou por três anos) não é filho de todos nós, mas sim de um governo omisso que rouba sem cessar, descaradamente, quando pagamos fortunas de impostos, numa luta tenaz pela sobrevivência e educação dos nossos filhos legítimos. A passividade deste desgoverno, desta impunidade vergonhosa, sim, é filha nossa, parindo os que receberam nosso voto e jogam na rua a nossa dignidade.

Inês Mascia Carneiro Monteiro

IV - Filhos

A reportagem Filho da Rua mostra que a mãe de Felipe nunca usou contraceptivos por achar que “Deus sabe o que faz”. Ela teve seis filhos. Participantes do Painel RBS entendem que não é possível deixar a questão do número de filhos na esfera divina. É preciso colocá-la na alçada das políticas públicas.

O juiz José Antônio Daltoé Cezar, da 2ª Vara do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre, considera muito importante implantar uma política de planejamento familiar:

– Vemos no dia a dia que falta isso. As mães chegam aos 23 ou 24 anos já com quatro ou cinco filhos. Na semana passada, devo ter recebido dos hospitais umas 10 mães usuárias de crack. Essas mães não têm acesso a uma política pública de contracepção. A sociedade ainda tem muito preconceito em trabalhar a contracepção. Poderíamos trazer a questão para o plano da realidade, botar o pé no chão é ver como as pessoas efetivamente vivem.

Um dos fatores que mais me comovem, em casos como o dele e da sua família, é que famílias incapacitadas de dar um bom subsídio e educação a essas crianças têm uma quantidade grande de filhos. Vejo o mesmo na minha escola, é frequente uma mãe ter seis ou sete filhos sem mínimas condições financeiras e psicológicas para isso... É triste, é estarrecedor, nos inquieta, mas trouxeram à tona um retrato muito fiel dessa mazela social. E o pior de tudo, nos sentimos responsáveis por financiar esses meninos de rua.

Letícia Germano

V - Drogas

– Estou no Juizado desde 1999. O que mudou de lá para cá? O crack. Quando cheguei, não havia criança usando crack. Muito da desagregação das famílias é fruto do crack – observou José Antônio Daltoé Cezar, juiz da 2ª Vara do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre.

A ineficácia do sistema para recuperar quem usa a droga foi reconhecida pelos participantes. Houve concordância de que oferecer um máximo 21 dias de internação, como ocorre hoje, é inútil.

Também foi ressaltada a precariedade da rede de comunidades terapêuticas que poderiam oferecer um tratamento prolongado, pós-desintoxicação.

– Temos 273 comunidades terapêuticas, mas poucas estão regularizadas. Nossa preocupação é que se estruturem, que contratem educadores, psicólogos, equipes de saúde, para trabalhar com eficiência – disse Fabiano Pereira, secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos.

“O teor da reportagem é um alerta para os governantes, e mostra a situação real em que se encontram muitos jovens que vivem nas ruas, à mercê das drogas e do abandono.”

José Alberto Ely Pasquali

VI - Felipe

Os participantes do debate comentaram o caso específico de Felipe, o menino cuja trajetória foi esmiuçada no caderno especial Filho da Rua. O sociólogo Ivaldo Gehlen notou que, apesar de tudo, o menino demonstra estar permanentemente preocupado com o futuro – o que abre muitas potencialidades:

– Esses meninos têm projetos e sonhos que precisam ser acalentados.

Marcelo Dornelles, subprocurador geral de Justiça para Assuntos Institucionais do Ministério Público, também comentou a trajetória de Felipe e sugeriu que conhecer seus detalhes é um passo para encontrar saídas:

– Felipe idolatrava o pai e queria reencontrá-lo, pensando que seria uma solução. Ele encontra o pai e se frustra. O somatório de frustrações dessa criança é que faltou atender.

Júlia Obst, da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), órgão da prefeitura de Porto Alegre, notou que o caso do menino acompanhado por ZH ilumina um universo maior:

– Felipe não é o único. Existem outros em situação grave.

“Parabenizo por Filho da Rua, que mostra a trajetória de Felipe, uma história carregada de emoção e de situação de vulnerabilidade social. Assim, as pessoas podem ter consciência de que a sociedade sustenta a esmola de muitas crianças pelas ruas, e, se cada um fizer a sua parte, não teremos mais crianças nessas situações de precariedade.”

Felipe Spuldaro

VII - Rua

Por que as crianças vão para a rua? O sociólogo Ivaldo Gehlen observa, que apesar de ter havido nos últimos anos uma redução do número total de meninos de rua, aumentou a quantidade de crianças pequenas vivendo pelas esquinas. Esse universo abrange o universo pré-escolar, para o qual a oferta de ensino é precária.

– O que me parece é que os mais pequenos estão desamparados – diz o sociólogo.

O juiz José Antônio Daltoé Cezar observa que o perfil do menino de rua envolve desagregação familiar, com frequência relacionada ao consumo de crack.

– Nesse perfil, o pai e a mãe são ausentes. Não exercem autoridade. Não há pertencimento da criança. Ela vai à rua para pertencer a um grupo.

Segundo Júlia Obst, da Fasc, é preciso reconhecer ainda que, para algumas crianças, a rua é muito mais atrativa do que o lar.

“Parabéns, Zero Hora, por Filho da Rua. Presumo que essa voz, de uma forma ou de outra, produzirá seus frutos. Falando por mim, após a leitura da reportagem, passarei a enxergar os “Felipes” que vagam pelas ruas com olhar diferente daquele com que os enxergava outrora.”

Virgílio Melhado Passoni

VIII - Sociedade

Cada cidadão pode colaborar para combater o drama dos meninos de rua – e não se faz isso dando esmola. O consenso é de que a esmola atrapalha, na medida em que torna a rua atraente para a criança.

– Durante muito tempo, a esmola teve um papel preponderante na questão dos meninos de rua. Mas, nos últimos anos, o poder público está assumindo a responsabilidade. Em lugar de beneficiar, a esmola passou a atrapalhar. Ela é uma postura degradante, porque significa não só alimentar a situação, mas também manter uma postura de distanciamento – afirmou o sociólogo Ivaldo Gehlen, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Segundo Ivaldo, a sociedade pode ajudar de outras formas. Ele propõe que cada pessoa ofereça o auxílio que sua própria atividade permitir. Como sociólogo, exemplificou, ele colabora realizando pesquisas sobre o tema. O psicólogo Lucas Neiva-Silva sugeriu que cada pessoa passe a andar com um preservativo, para dá-lo de presente a quem está na sinaleira. Seria uma forma de oferecer saúde e proteção, em lugar de dar esmola. Fabiano Pereira, secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos, lembrou que é possível destinar uma parcela do Imposto de Renda a fundos que financiam programas de atendimento à infância.

– A esmola é o pedágio da consciência, mas não resolve. Os fundos são um mecanismo melhor, que financiam entidades que fazem um atendimento extraordinário – opinou Pereira.

“Felipe não é um inocente, mas também entendo que Felipe é vítima de todos nós, que fazemos parte desta sociedade e deste sistema e que, de alguma forma ou de outra, contribuímos para a tragédia de vida do Felipe até hoje. Aos 14 anos sem saber ler, viciado em crack, sem ter limites na vida, sem esperança e com medo de seu futuro, penso eu que, cada um de nós (parte da sociedade gaúcha e brasileira) deve, ao invés de apenas lamentar, assumir que também é culpado e que pode sim, fazer algo para mudar este quadro (não só do Felipe mas de tantas e tantas outras crianças e adolescentes que nos rodeiam).”

Leandro Almeida

Ecos de uma história triste

Nestes três anos e três meses em que acompanho os passos de Felipe, ouvi todo tipo de comentários a respeito do meu projeto de reportagem. Lembro de alguns colegas terem me olhado com estranhamento, questionando o que uma apuração como essa teria a revelar. Houve quem dissesse que era um assunto desgastado, que todo mundo estava cansado de ver meninos na esquina. Outros argumentavam que o tema era relevante, mas seria incapaz de despertar a atenção dos leitores porque se tratava de uma narrativa triste, dolorida, cinzenta.

Naquele tempo, eu não tinha mais do que a minha convicção de que esta história merecia ser contada para justificar a minha persistência, com respaldo da direção de Redação. A partir da publicação do caderno de 16 páginas em que se transformou essa reportagem, com centenas de e-mails recebidos e comentários de leitores postados nas redes sociais sobre este trabalho, as respostas que faltavam ecoam de diferentes vozes.

Desde o final de semana, acumulo relatos de leitores indignados com a incapacidade da mãe de controlar o filho, com as falhas no serviço público, com a falta de dignidade da família que divide espaço com ratos de 30cm na Vila do Esqueleto. Confissões de pessoas que não conseguiram dormir, que choraram enquanto viam, pelas páginas do jornal, como Felipe perdeu a sua infância para as ruas. Mensagens com reflexões de gente que prometeu a si mesma nunca mais dar esmolas depois de perceber os efeitos nocivos dessa suposta caridade na vida de Felipe. Discursos de agentes públicos prometendo qualificar o atendimento à infância e aos dependentes de crack.

Acima de tudo, são relatos que mostram que os leitores ainda se importam com o destino de um menino que é o retrato acabado de um fracasso coletivo. E isso é alentador. Enquanto houver indignação, é possível acreditar na transformação desta realidade. Porque esta não é apenas uma história – há centenas de Felipes vagando sem destino. Como mostra a trajetória deste menino-símbolo acompanhado por ZH, não há apenas um culpado. Somos todos cúmplices.
LETÍCIA DUARTE | REPÓRTER



Nenhum comentário:

Postar um comentário