sábado, 13 de junho de 2015

QUERO É SER BANDIDO MESMO


Estupro, espancamento e morte: a tarde de horror no Piauí. Adolescentes que participaram do estupro coletivo de quatro meninas têm longo histórico criminal. 'Não era para ele ter sido solto', diz a mãe de um deles sobre internações anteriores

Por: Felipe Frazão, de Castelo do Piauí
VEJA ONLINE 13/06/2015 às 11:46





Adolescentes confessaram participação no estupro coletivo de quatro garotas na cidade de Castelo no Piauí (Foto: VEJA.com/Divulgação)


"Ele disse na minha frente e na frente do juiz 'Quero é ser bandido mesmo'. Fiquei em choque" Cezário Cavalcante Neto, promotor

A porta de um dos cômodos na casa do comerciante Jorge Moura, de 52 anos, na pequena Castelo do Piauí, cidade com pouco mais de 18.000 habitantes a 180 quilômetros de Teresina, não é aberta há duas semanas. Moura e a mulher não conseguem entrar no local desde que a filha Danielly Rodrigues Feitosa, de 17 anos, desapareceu na tarde de 27 de maio depois de subir com três amigas o Morro do Garrote para tirar fotos que seriam publicadas em redes sociais. No caminho, as estudantes foram rendidas por quatro adolescentes que, naquela tarde, usavam drogas na companhia de um traficante de 39 anos, fugitivo de São Paulo. O desfecho desse encontro foram duas horas de terror. As meninas foram despidas à faca, amordaçadas com as próprias roupas íntimas, amarradas a um cajueiro, torturadas e obrigadas a manter relações sexuais com os cinco monstros. Depois disso, foram atiradas de um penhasco. A queda no terreno de pedregulhos pontiagudos provocou ferimentos severos. Elas ainda ficaram cravejadas de espinhos pelo corpo. Mas isso não bastou. Dois menores desceram o morro e tentaram liquidá-las a pedradas. Danielly morreu no último domingo e uma das vítimas permanece internada em estado grave. A atrocidade foi cometida no momento em que o Congresso Nacional parece ter decidido fazer avançar mudanças na maioridade penal no Brasil. Quem conheceu as quatro meninas da minúscula cidade do Piauí, estado recordista em indicadores negativos no país, só quer resposta para uma pergunta: menores que cometem crimes brutais como esse vão ficar impunes?


"Nunca vou me conformar com uma brutalidade dessas. Que Deus os mande bem para longe, para onde merecerem", disse o pai de Danielly ao site de VEJA, com o olhar vago de quem ainda tenta entender tamanha crueldade.

As buscas pelas garotas começaram na noite de 27 de maio. Policiais civis encontraram as duas motos Honda Bros de 150cc, pilotadas por elas, no pé do morro e logo as removeram para a delegacia. As motos foram reconhecidas por vizinhos e familiares, o que fez com que os policias retornassem às pressas para o local, acompanhados por dezenas de populares. As meninas foram avistadas empilhadas nas rochas de cor acobreada. Só uma não estava desacordada, mas agonizava e se apavorou ao escutar as vozes. A Polícia Civil não teve dúvida: os primeiros suspeitos eram os garotos que há tempos aterrorizavam a cidade - nos últimos dois meses, I.V.I, de 15 anos, teve oito acusações registradas por furto de residência e roubo de motos.

A barbárie chegou rápido aos ouvidos da população de Castelo do Piauí. Uma barricada de pneus em chamas à porta da delegacia e centenas de pessoas clamando por Justiça tomaram as ruas. Os menores foram levados para quatro pontos diferentes da cidade para evitar um linchamento. Foram depois transferidos para a delegacia de Campo Maior, onde foram ouvidos, confessaram o crime e apontaram o traficante Adão José Silva Souza como mentor. Ele fornecia crack e maconha para os meninos - um deles F.J.C.J, de 16 anos, é cunhado de um primo do traficante.

No caminho do crime - A história de vida dos menores infratores não surpreende: são notórios garotos-problema na cidade. Criados em famílias pobres e desestruturadas, que não conseguiam mais domar os meninos franzinos, ainda com porte físico de criança - é difícil crer, à primeira vista, que um deles tenha 17 anos -, eram usuários de crack e maconha e semanalmente detidos por furtos e roubos. Os pais passam a sensação de paralisia diante de tanta reincidência dos filhos.

Nos últimos anos, quase todos os pequenos furtos que ocorrem no município recaem sobre os garotos, agora jurados de morte pela população. Na quinta-feira, a primeira audiência deles na Justiça precisou ser transferida para Teresina por falta de segurança na cidade. A faixa negra no portal de entrada de Castelo do Piauí reflete o clima de tensão e vingança.

De 2014 para cá, foram doze boletins de ocorrência contra o menor I.V.I. - nem todos com autoria comprovada. Dezenas de vítimas relatam crimes com o mesmo modus operandi do menino (invasões pela janela ou pelo telhado), mas temem acusá-lo. Após se notabilizar por furtos em residência, ela agora andava roubando motos - as marcas de um tombo durante uma fuga frustrada de moto estão na cicatriz que risca sua cabeça. "São muitos atos infracionais praticados por eles, principalmente o I.V.I., que é detido com frequência. Desde os dez anos de idade essa criança está fazendo coisa errada e os atos infracionais atribuídos talvez cheguem a quase cem", diz o coordenador de Polícia Civil de Castelo do Piauí, Edílson Lima.

Nos últimos anos, quase todos os pequenos furtos que ocorrem no município recaem sobre os garotos, agora jurados de morte pela população. Na quinta-feira, a primeira audiência deles na Justiça precisou ser transferida para Teresina por falta de segurança na cidade. A faixa negra no portal de entrada de Castelo do Piauí reflete o clima de tensão e o desejo de vingança.

De 2014 para cá, foram doze boletins de ocorrência contra o menor I.V.I. "São muitos atos infracionais praticados por eles, principalmente o I.V.I., que é detido com frequência. Desde os dez anos de idade essa criança está fazendo coisa errada e os atos infracionais atribuídos a ele devem chegar a quase cem", diz o coordenador de Polícia Civil de Castelo do Piauí, Edílson Lima.

O grupo de menores que agem à margem da lei tem histórico de invadir casas, assaltar mercearias e roubar motos. Em março, a Polícia Civil indiciou por corrupção de menores uma mulher que fornecia bebidas e drogas para os adolescentes, além de já ter mantido um relacionamento amoroso com um deles, F.J.C.J, de 16 anos, que depois do estupro das estudantes disse ter "bebido cachaça até as 3 horas da madrugada". Nélia Alexandre dos Santos Vieira, a Leila, diz ser apenas amiga dos garotos e frequentar com eles bailes funk. Outro deles, B.F.O, de 15 anos, chegou a ser expulso de casa pelo pai porque passou a dormir na casa dela. Primeiro a ser detido, ele delatou os demais às equipes de captura após o estupro das quatro adolescentes que nunca tinha visto. "Elas eram bonitas, de boa aparência e bem vestidas, mas eu não as conhecia", disse à polícia.

O site de VEJA consultou dados recentes da delegacia de Castelo do Piauí, que não possui delegado fixo e está em condições precárias de funcionamento e conservação. O arquivo só tem registros recentes. Apenas dois policiais civis, um carcereiro e um PM se revezam no policiamento diário. Desde 2013, foram autuados contra os meninos dez registros diferentes de atos infracionais confirmados por furto, roubo, ameaça, resistência e associação criminosa. Em algumas ações, eles usaram peixeiras para ameaçar as vítimas. Isso sem falar nos boletins de ocorrência atribuídos a I.V.I. A polícia também fez três pedidos de internação contra dois dos menores: um para G.V.S, de 17 anos, e dois para I.V.I, de 15 anos, apontado como o mais violento e perigoso.

G.V.S.: "Quero ser bandido" - G.V.S é o menor que aparece em vídeo obtido pelo site de VEJA, no qual o traficante Adão José Silva Souza é acusado de ter forçado as quatro vítimas a manter relações sexuais com ele e com todos os meninos com uma arma à mão - a versão também consta dos depoimentos dos demais menores, embora a polícia não tenha encontrado o revólver 38 na cena do crime, nem um revólver 32, que também aparece em um dos depoimentos. O vídeo foi gravado por policiais civis após a captura dos menores na manhã seguinte ao crime - os celulares das vítimas ainda estavam jogados no local.

G.V.S foi reconhecido por fotos durante o depoimento de duas das adolescentes que conseguiram falar à polícia: J.L.S., de 15 anos, que recebeu alta nesta semana, e I.C.M.F., de 16 anos, que sofreu traumatismo craniano e está vivendo na casa do pai em Teresina. Segundo elas, foi ele quem as abordou primeiro com uma faca. A terceira sobrevivente, R.N.S.R, de 17 anos, ainda não teve alta no Hospital de Urgências de Teresina (HUT).

"Esse menor de 17 anos é frio e calculista, não consigo acreditar que um ser humano faça tamanha crueldade. Ela lembra que ele veio primeiro colocou uma faca no pescoço da Danielly. Elas tentaram correr, mas ele ameaçou matá-la. Minha sobrinha disse 'tia, nós paramos porque eu não ia suportar carregar essa culpa comigo'", diz a professora e historiadora Márcia Mineiro, que acompanhou a sobrinha I.C.M.F. na ambulância durante o transporte para Teresina. Durante a transferência, a jovem deitada no chão não largou a mão da tia. "Ela cravou a unha na minha mão e apertava quando alguém encostava nela. Ela sabe o que aconteceu, não lembra muito, mas quando eu perguntei sobre a violência sexual, só chorou."

A mãe do infrator G.V. S afirma que ele começou a se envolver com o crime logo aos 10 anos de idade. Estudou apenas até a 5ª série e abandonou a escola. O primeiro roubo foi um CD. Depois partiu para celulares e câmeras. No ano passado, já havia sido internado por 45 dias no Centro de Internação Provisória (CEIP) por furtos repetidos. Quando saiu, o menor disse: "Nunca mais vou pisar nesse lugar". Mas não cumpriu a promessa feita à mãe - com quem não teve contato desde a nova internação.

G. V. S. mora em um pequeno casebre em uma rua de terra batida a menos de um quilômetro do local onde participou do estupro. De cima do Morro do Garrote avista-se a casa dele. Vive com o padrasto e a mãe, que está gravida do oitavo filho. G.V.S. têm duas irmãs gêmeas de seis anos, uma de 9 anos, uma de 12 anos e outra de 15 anos, além de um irmão de 19 anos, que sofre de distúrbios mentais. O filho mais velho é fonte da renda principal: recebe um salário mínimo do governo. A mãe recebe 260 reais do programa federal Bolsa Família. E só. Ela não trabalha e o padrasto do adolescente vive de bicos. A família se divide em dois cômodos acanhados na casa de paredes internas mofadas e descascadas com uma tinta azul e verde. Na parede só há retratos das irmãs. Por fora, tijolos e concreto estão aparentes. A cerca é improvisada.

"Tudo o nosso dinheiro vai para comida, não tenho nem telefone. Mas o meu menino não tinha precisão não. Aqui a gente não come do bom e do melhor porque você sabe como é vida de pobre, mas nunca passamos um dia sem uma panela no fogo", disse a dona de casa Elizabete Vieira da Silva, de 35 anos.

Segundo a mãe, G.V.S tinha comportamento agressivo com as irmãs - mas não com ela. Elizabete afirma que sempre que o garoto entrava em casa as meninas diziam: "Lá vem o ladrão!". G.V.S ficava furioso. "Ele ficava fungando, respirando fundo, mas não vinha para cima de mim não porque eu enfrentava". Para a mãe, ele age por causa de más companhias e, principalmente, pelo vício em drogas. Sempre que voltava para casa sob efeito de entorpecentes, tentava esconder com o boné os efeitos da maconha. A mãe diz que sempre implorou para que ele "saísse dessa vida e fosse trabalhar" e que chegou ameaçar abandoná-lo. Ela também relata que os menores infratores estavam "intrigados" um com o outro, e que frequentemente se ameaçavam de morte. "Antes de acontecer isso aí, a polícia o prendeu e depois soltou. Não era para ter soltado ele, nada teria acontecido", disse a mãe. "Quando a gente coloca um filho no mundo não vem escrito na testa o que ele vai ser. Se viesse eu não iria querer".

O promotor Cezário Cavalcante Neto conta que já decidiu perdoar G.V.S. em uma audiência e solicitou que ele fosse matriculado em uma escola em vez de ser internado. O garoto reagiu: "Ele disse na minha frente e na frente do juiz 'Quero é ser bandido mesmo'. Fiquei em choque".

I.V.I.: Terror da cidade - Há cerca de dois meses, a família de I.V.I se mudou para um pequeno imóvel comercial de uma tia do adolescente, com medo de que ele sofresse represálias. Os pais e dois irmãos, duas crianças louras de 2 e 4 anos de idade, vivem amontoados na entrada de uma antiga loja, um ambiente sujo e sem privacidade. Eles usam uma cortina para cobrir o portão de ferro - sem ela, seria possível para ver da rua a casa inteira. I.V.I, dormia em uma rede. Também gostava de ficar na antiga casa da família, no bairro Cohab, onde a polícia apreendeu nesta quinta-feira roupas do dia do estupro, entre elas uma peça feminina - estavam queimadas e serão periciadas.

Aos 15 anos, I.V.I já não respeita os pais. É autor em seis atos infracionais registrados na delegacia de Castelo do Piauí e está internado pela terceira vez em uma instituição para recuperação. Em dezembro de 2014, quando o delegado Laércio Evangelista pediu sua internação pela segunda vez, I.V.I havia tentado esfaquear um policial militar após ter furtado e levado para casa celulares, um relógio e uma espingarda. O delegado comunicou ao Ministério Público que I.V.I estava "ameaçando e aterrorizando" a população de Castelo do Piauí e que já haviam perseguido o menino pelas ruas tentando matá-lo. Um dia antes do estupro, em 26 de maio, I.V.I e B.F.O foram autuados por roubo. Horas antes do crime, havia sido procurado pelo furto de uma moto.

"Quero que ele fique internado para ver se sai deste mundo em que estava vivendo. Qualquer hora chega a notícia que não quero receber nunca", diz a desempregada Patrícia Visgueira Izaias, de 38 anos, mãe de I.V.I. "Acho que não convém ele voltar para Castelo", diz o pai, o aposentado Manoel Izaias, de 63 anos, carpinteiro aposentado por sofrer de distúrbios mentais e insônia permanente - dorme à base de remédios há duas décadas. A família vive com 1.000 reais de renda da aposentadoria de Manoel e 306 reais do Bolsa Família. "Depois dessa aí ele sujou a família", diz a mãe.

Patrícia visitou o filho no Centro de Internação Provisória no domingo. Ela afirmou que o garoto está em local isolado e que recebe bom atendimento: "Nem parece coisa para filho de pobre". Ela disse que ele não demonstrava preocupação e que pediu que ele confessasse a ela o envolvimento no estupro coletivo. Ele disse à mãe que permaneceu na casa de um vereador na cidade, tio de uma das vítimas, onde teria trabalhado pela manhã furando um poço. "A desgraça da vida do I.V.I foram as amizades. Ele teve amizades bem mais pesadas do que ele", diz a mãe. "Antes ele me ajudava com tarefas domésticas e era muito apegado aos irmãos."

Desobediente e desinteressado, I.V.I já não era aceito nos colégios de Teresina e a família teve de apelar ao Conselho Tutelar para conseguir matriculá-lo. "Até eu me matriculei para ver se ele ia junto, mas nos dias que eu fui ele não ia, até que abandonei também", conta a mãe.

A Assistência Social da Cidade já recomendou acompanhamento psicológico por seis meses, mas o adolescente só aceitou ir a uma consulta. I.V.I chegou a ficar internado em uma unidade da Fazenda da Paz, nas proximidades de Timon, no Maranhão, uma clínica terapêutica para dependentes de drogas, mas fugiu do lugar com menos de uma semana. "Eu deixei ele na porta e menos de uma semana depois ele apareceu na casa da minha irmã em Teresina".

O Ministério Público já representou pela internação máxima para os quatro acusados de associação criminosa, estupro, homicídio, corrupção de menores e três tentativas de homicídio e só podem ficar até três anos internados pela atual legislação, agora em debate no Congresso Nacional. Mas, pela primeira vez em décadas, é possível que isso mude.

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