segunda-feira, 29 de junho de 2015

A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL VISTA DE DENTRO



ZERO HORA 28 de junho de 2015 | N° 18208



POR LETÍCIA DUARTE FOTOS DE CARLOS MACEDO




O PrOA visitou a Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) para saber o que adolescentes com histórico de infrações pensam sobre o projeto de redução da maioridade penal, que será votado nesta terça-feira pela Câmara dos Deputados. Se o olhar de quem está de fora é de medo ou condenação, o olhar de quem está dentro surpreende.

O guri fala com os braços cruzados sobre o moletom cinza, deixando escapar um meio sorriso no canto da boca.

– 95% daqui se cai lá morre lá dentro, eles não são malandros.

Lá e aqui são definições abstratas para dois mundos que Evandro* conhece bem – e que estão no centro de uma das discussões mais candentes do Congresso Nacional.

Seu “aqui” é a Fundação de Atendimento Socioeducativo do Estado (Fase), que abriga adolescentes que cometeram atos infracionais. “Lá” é o Presídio Central, principal porta de entrada para presos com mais de 18 anos no Rio Grande do Sul.

Aos 18 anos, Evandro tem um pé lá e outro cá. Passou oito meses no Central por roubo de carro, mas quando ganhou a liberdade precisou retornar à Fase para pagar uma “bronca de menor”, por um assalto cometido aos 12 anos. De sua experiência entre aqui e lá, tirou uma conclusão improvável.

– Os guris aqui sofrem mais do que os bandidos lá – compara o jovem, que conversou com a reportagem do caderno PrOA numa segunda-feira à tarde, na Unidade Carlos Santos, em Porto Alegre.

Do lado de cá, na Fase, estão alguns daqueles que 87% da população brasileira quer colocar lá, no presídio – segundo pesquisa do Datafolha, nove em cada 10 brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal. A maioria desses brasileiros não conhece direito nem o lá nem o aqui, mas se assusta com a escalada da violência nacional e acha que, se os daqui forem colocados lá, tudo poderia melhorar. O projeto que prevê a redução da maioridade penal para crimes hediondos, já aprovado em comissão especial da Câmara, será votado pelo plenário nesta terça-feira, dia 30.

Os argumentos de quem vê a discussão pelo lado de dentro nem sempre coincidem com os raciocínios de quem julga de fora. Evandro, por exemplo, diz que é contra a redução da maioridade penal, mas não fala em causa própria. Garante que, se pudesse escolher, preferiria responder pelo que deve no presídio. Não que lá, no Central, fosse um lugar melhor. Lembra do cheiro de esgoto e da profusão de ratos e baratas na cela, onde se empilhavam 10 detentos. Só que estar lá tinha outras compensações: mais de cinco horas de pátio sem obrigações, num universo onde circulam livremente celulares, facões e até geladeiras particulares, que entram no sistema prisional à margem da legislação.

– Não tem monitor lá. A polícia só fica em volta pra não fugir, quem manda lá é nós – resume.

Já na Fase ele vê monitores circulando o tempo todo, até para ir ao banheiro é acompanhado. Todo mundo é obrigado a frequentar a escola. O horário de pátio se limita a duas horas. Por tudo isso, Evandro discorda daqueles que dizem que o sistema de internação é brando demais.

– Prefiro puxar lá no Central do que aqui, lá é mais livre. Aqui parece uma creche – reclama.

A opinião de Evandro não é isolada. No início deste mês, 10 internos da Fase que já completaram 18 anos chegaram a organizar um motim com o objetivo de serem transferidos para o Central. O caso aparentemente inusitado revela camadas de uma realidade apenas superficialmente tocada pelos discursos que cercam a questão.

Enquanto a maior parte da população acredita que a redução da maioridade penal seria uma forma de reagir a episódios rumorosos, como o caso das adolescentes estupradas e mortas por quatro menores de idade e um adulto em Castelo do Piauí, quem conhece os escaninhos do sistema assegura que esse suposto remédio funcionaria na verdade como um agravante da doença do sistema.

– As pessoas acham que a redução da maioridade vai reduzir a impunidade, mas vai aumentar. Só no Estado hoje temos 1,5 mil presos aguardando vaga no semiaberto, a lotação é tanta que temos fila para prender. E essa situação absurda vai se agravar se isso for aprovado – alerta o juiz Carlos Gross, da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Capital.

Aos que dizem que adolescentes ficam impunes pela legislação atual, o juiz responde com um exemplo prático. Se hoje um jovem de 18 anos for apanhado cometendo um roubo em companhia de um adolescente, o que acontece?

– O menor vai para a Fase, recebendo uma medida média de nove meses a um ano e meio. O maior vai responder preso, mas se não tiver antecedentes vai para o semiaberto, e como tem fila de espera, vai ficar solto. Hoje já se dá exatamente o contrário do que pensam, os adolescentes acabam tendo punição maior – argumenta.

Dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias divulgados nesta semana mostram que, em 15 anos, o número de presos cresceu 161% – enquanto a população aumentou 20%. Os dados fazem do Brasil o detentor da quarta maior população carcerária do mundo, com 607 mil presos. Dois em cada três são negros e metade não frequentou a escola ou tem ensino fundamental incompleto. Para a defensora pública Marta Zanchi, vice-presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos, apostar em políticas que atacassem as causas, como a redução da evasão escolar, seria mais eficiente do que enjaular a todos, como se fosse possível apartar da sociedade as deformações que ela mesma produz.

– Ainda que se encarcere todo mundo dentro do presídio, essas pessoas vão sair um dia. E vão sair como? – questiona.

Juliano*, 16 anos, que está na Fase há oito meses, espera sair diferente. O guri com histórico de roubos de motos vem descobrindo outros talentos. Já fez cursos de informática, costura e agora se aventura pelo mundo da culinária.

– Nunca pensei que eu pudesse fazer essas coisas. Antes, não sabia nem fazer miojo – conta.

Aluno do primeiro ano do Ensino Médio, o interno da unidade Padre Cacique se voluntariou para ser um dos representantes da instituição em discussões sobre a redução da maioridade penal. Em dezembro, vai a Brasília para a 10ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

– Com essa redução só vai piorar, todo mundo sabe que o presídio é uma escola do crime. Minha primeira carteira assinada eu consegui aqui na Fase. Quando eu sair eu quero mudar, começar tudo de novo – diz, sonhando com um futuro em que “lá” signifique estar em casa, e não numa prisão.

* Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados, em respeito ao ECA.




O Brasil já prende jovens


Quando começou a se debruçar sobre os dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), a socióloga Jacqueline Sinhoretto, professora da Universidade Federal de São Carlos e consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) imaginava encontrar correspondência entre o aumento do número de prisões nos Estados e a redução no índice de homicídios.

Mas os resultados, compilados na publicação Mapa do Encarceramento – Os Jovens do Brasil, lançada no início deste mês pela Secretaria Nacional da Juventude, desconstruíram a expectativa.

– Não existe essa correlação direta. Prender mais como medida isolada não reduz homicídios. O que reduz é uma política articulada com prevenção, atenção ao egresso, investigação dos crimes mais graves, redução da letalidade penal – concluiu, citando os resultados de Pernambuco como uma das exceções positivas.

Depois de seis meses sobre os dados, que indicaram um crescimento de 74% na população carcerária entre 2005 e 2012, a socióloga também reforçou sua convicção de que a redução não atingiria o objetivo esperado.

– Prender jovens já é o que o Brasil está fazendo. Aumentar o número de presos como medida isolada já está comprovado que não reduz a violência, mas aumenta a degradação do sistema carcerário e vai ter um efeito muito negativo para essas pessoas – analisa.

Dos 607 mil presos do país atualmente, 56% têm de 18 a 29 anos. Os números apontam que o crescimento de prisões é focado em um perfil específico: jovens e negros, especialmente. Apesar de o homicídio ser o crime mais preocupante, apenas 12% dos presos do país respondem por ele, enquanto metade dos encarcerados cumpre pena por delitos contra o patrimônio, e um quarto, por tráfico.

Para Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a proposta da redução da maioridade penal tem sido vendida como uma tábua de salvação, como se existisse uma solução simples para o problema da violência. Ele observa, porém, que a tendência internacional é rever a ideia de sistemas de aprosionamento em massa, por considerá-los espaços de “network” do crime, onde bandidos ampliam suas redes de contatos e a potencialidade de novos ataques.

– Um caso interessante é esse dos autores do atentado ao Charlie Hebdo. Eles eram criminosos comuns, que foram presos e na prisão fizeram contatos com lideranças da Al-Qaeda. Até que ponto as prisões servem para articular a raiva e a revolta do sistema prisional? – questiona.

Além de afetar o próprio sistema, inchando ainda mais as unidades superlotadas, a possibilidade de prisão de adolescentes a partir de 16 anos também suscita outras questões, como o que aconteceria com outros direitos assegurados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em tese, haveria brecha para outras revisões legais.

– A redução (da maioridade penal) pode implicar outras autorizações, como menores de 16 anos dirigirem e beberem (álcool). Mas hoje os acidentes de trânsito são uma das principais causas de mortes. Essa medida populista pode produzir um efeito colateral muito perigoso – adverte Manso.

Contrário à aprovação do projeto, um conjunto de entidades ligadas à proteção dos direitos da infância lançou o portal Maioridade Penal (maioridadepenal.org.br), que oferece informações detalhadas sobre a tramitação e dados estatísticos. O site mostra, por exemplo, que apenas 3,8% dos crimes e atos infracionais do país foram praticados por adolescentes.

– Se mudar essa lei não vai ter mudança no perfil da violência, mas no futuro desses adolescentes sim. Existe um olhar muito equivocado de que eles não têm mais jeito, mas não se está se investindo para que seja diferente – critica a administradora executiva da Fundação Abrinq, Heloísa Oliveira.







Nas redes sociais, mais não do que sim


ENTREVISTA: FEDERICO BARRETO



Como se dividem na internet apoiadores e críticos da redução da maioridade

Apesar de pesquisa divulgada no início da semana pelo Instituto Datafolha mostrar que 87% dos brasileiros apoiam a proposta de redução da maioridade penal, quem circula pelas redes sociais pode ter uma impressão diferente.

Estudo realizado pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) mostra que, no Facebook, 70% das páginas, grupos e eventos públicos criados para debater a proposta são contrários à diminuição para 16 anos. No Twitter, o monitoramento feito entre 20 de março e 20 de junho, com base em 148 mil tweets e 48.707 retweets, também indicou mais não do que sim ao projeto.

No monitoramento realizado no Twitter, o alto volume de discussões sobre o assunto surpreendeu. Mas o que mais chamou atenção do professor Fábio Malini, coordenador do Labic, foi o alto índice de politização do debate. Quando analisou o conteúdo das mensagens compartilhadas, reparou que frequentemente a redução da maioridade penal vinha acompanhada de discussões políticas, ao lado de hashtags inusitadas como #prendamLula.

– A discussão sobre a maioridade penal está extremamente contaminada pela discussão política, é um teatro do absurdo. Se vê que é um debate oportunista, no meio de uma disputa política – opina Malini.

A cartografia das interações observadas serviu de base para a confecção de dois mapas ilustrativos da discussão nas redes. O primeiro, do Facebook, mostra que quatro páginas concentram o maior volume de interações: Amanhecer Contra a Redução, Movimento Contra a Redução da Maioridade Penal, Não à Redução da Idade Penal e Não à Redução.

Já no Twitter, há quatro blocos com diferentes posições. A rede marrom, favorável à redução, é “permeada por robôs” que reproduzem conteúdo postado por personalidades como Rachel Sheherazade, Eduardo Cunha, Rodrigo Constantino, e Jair Bolsonaro. A conclusão de que boa parte desse conteúdo é postada por softwares programados é baseada em um filtro que calcula o número de tuítes por minuto. A rede azul é marcada pela oposição à redução, inclinada com a perspectiva federal. Já a rede vermelha, também contrária à proposta, tem como protagonistas atores mais jovens, que trazem novos elementos para o debate, “misturando táticas publicitárias, de ocupação de espaços físicos e ações de engajamento virtuais, com forte criatividade social”. No centro do debate, mediando a polarização, aparecem veículos de imprensa, com notícias e discussões sobre a questão.

Ainda que o ativismo midiático possa ser considerado um nicho, Malini acredita que a multiplicidade de vozes desmente a visão de que este é um debate acabado ou vencido.

– O rastro de mobilização já está aparecendo. O ideal seria que houvesse um referendo para ouvir a população – defende.




“Mais repressão não é o caminho”

POR LETÍCIA DUARTE


Antes de um referendo sobre a redução da maioridade penal, em outubro do ano passado, 70% dos uruguaios se diziam favoráveis à medida. Mas o resultado nas urnas foi diferente: a redução acabou rejeitada, por 53% a 47%. A seguir, um dos organizadores do movimento No a la baja, Federico Barreto, que articulou a oposição, explica como a virada foi possível.

O movimento “No a la Baja” (“Não à redução”, em tradução livre) é citado como referência internacional na luta contra a redução da maioridade penal. Qual foi a principal estratégia adotada para convencer a população a mudar de opinião?

Embora tivéssemos uma enorme quantidade de argumentos de peso para rejeitar a proposta, o que precisávamos era combiná-los com uma estratégia de comunicação que atingisse a opinião pública. Para isso, resumimos todos os argumentos em três linhas fundamentais: 1) A redução não serve, de forma alguma vai colaborar para reduzir a insegurança no Uruguai, já que apenas 6% dos crimes são cometidos por adolescentes; 2) A redução é má, já que usa adolescentes como bodes expiatórios para os problemas do mundo adulto; 3) A redução é pior, já que potencializa a exclusão e a violência desses adolescentes, condenando-os, o que é provável, a um contato permanente com o mundo do crime.

No Brasil, uma comissão especial da Câmara aprovou recentemente a proposta de redução da maioridade penal para crimes hediondos e 87% da população se declara favorável à medida. O senhor tem acompanhado o caso brasileiro? O que o Brasil pode aprender com a experiência uruguaia?

No Uruguai, estamos muito atentos ao que acontece no Brasil no que diz respeito a esta questão. Já desde o ano passado, à medida que levávamos adiante a campanha, sabíamos que o que acontecia em nosso país também seria visto com olhos regionais. Hoje, continuamos cada vez mais preocupados com o que está acontecendo no Brasil e esperamos que também aí se consiga uma vitória da resistência popular. Sem querer dar lições, já que as situações são muito diferentes –, por exemplo, o caminho aí é parlamentar, enquanto aqui foi através de uma consulta popular –, acho que a chave para o sucesso no Uruguai foi saber aproveitar os potenciais populares próprios de nosso país. Foi sabermos abrir o máximo, ser mais e diversos, reconhecendo as nossas diferenças, mas trabalhando na unidade.

Como o senhor avalia o cenário internacional em relação à maioridade penal?

No Uruguai, desde a restauração da democracia, houve 19 tentativas de reduzir a idade de responsabilidade penal, todas fracassadas. Mas nós sabemos que isso não é uma obsessão uruguaia, uma vez que se podem encontrar os mesmos antecedentes em quase todos os países da região. A agenda de insegurança conecta de forma quase inalterada os setores conservadores de direita e os grandes meios de comunicação.

Qual é o maior equívoco que cerca a discussão sobre a maioridade penal?

O maior erro desta proposta específica parte do mesmo paradigma de “mão forte”, de que mais segurança só pode ser obtida por meio de mais repressão. Isto tem sido historicamente falsificado. Mais repressão pode significar um número maior de presos, mas nunca menos insegurança. Na verdade, os dados mostram que esse caminho não consegue reduzir os índices de criminalidade.



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