sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

FASE DO ÓCIO


MENINOS CONDENADOS. Médico vincula medicação de internos da Fase ao ócio. Psiquiatra que fez relato sobre funcionamento da CSE a uma juíza deve ser demitido hoje - ADRIANA IRION, ZERO HORA 03/02/2012

Intrigada com a presença de 12 internos da Comunidade Socioeducativa (CSE) “visivelmente medicados” em uma audiência judicial realizada em janeiro, a juíza Vera Deboni, do 3º Juizado da Vara Regional da Infância e Juventude, questionou, por ofício, a direção da casa pertencente à Fase sobre o porquê da medicação aplicada nos jovens.

A resposta, assinada pelo psiquiatra Jose Pedro Godoy Gomes Neto, 58 anos, e por um assistente de direção da unidade, estarreceu a magistrada: “Pelo ÓCIO, é por isto que se medica na Fase”.

Por considerar graves as informações que constam do documento, a juíza instaurou processo para responsabilizar a presidente da fundação, Joelza Mesquita, por eventuais irregularidades ou excessos. Joelza disse ontem que pretende demitir o psiquiatra e apurar se o servidor da CSE leu o ofício antes de assinar:

– Médico está lá para medicar pela doença, não pelo ócio. E não pode medicar porque o monitor pede ou o menino pede. Quero acabar com isso. E se o funcionário que assinou leu e concordou, é conivente. Não pode continuar.

Conforme a juíza, os infratores enrolavam a língua ao falar durante a audiência na Justiça.

No documento de três páginas e meia, o psiquiatra Gomes Neto tenta dar uma resposta à exigência que a Justiça tem feito de que os internos tenham diagnóstico para receber a medicação. O psiquiatra escreveu:

“...por que medicar se em sua maioria não são doentes? Não há como colocar que nossa clientela é doente mental em proporcionalidade maior que a preconizada pela OMS (Organização Mundial de Saúde). Então por que se medica tanto na Fase? A resposta é simples e definida em uma única palavra: ÓCIO.”

No texto, o médico fala de outros problemas, como a “escola fraca” e “ausência de conduta uniforme de funcionamento institucional com cada ala funcionando de acordo com a chefia daquele turno”.

Em outro trecho, o psiquiatra, que trabalha na CSE há nove anos, também revela descontentamento com práticas da instituição.

Reclama que há uma cultura de que se o jovem “pedalar” (termo usado para quando os internos se revoltam e chutam portas, janelas, grades), ele vai receber o que deseja. Segundo ele, essa não é uma atitude de boa educação e não seria aplicada nos lares. “Imaginemos que qualquer de nossos filhos, ao ser proibido de sair, pedalasse a porta de seu quarto, qual seria nossa atitude?”, pondera o médico no ofício.

O relato escrito do psiquiatra reforçou as suspeitas da juíza de que há excesso de medicação na CSE, unidade que reúne os jovens de perfil mais agravado da Fase.

Ela determinou a apuração de eventuais irregularidades, já que o médico afirmou que os internos são medicados por causa do ócio, ou seja, pela falta de atendimento e de atividades determinadas em lei.


Diretor de unidade diz que 70% dos internos recebem remédios

Um levantamento do 3º Juizado da Vara Regional da Infância e Juventude, em dezembro, indicou que 98% dos internos da Comunidade Socioeducativa (CSE) estavam sob medicação. O diretor da unidade, Alexandre Santana, contesta o dado, afirmando que 70% recebem remédios.

O tema da medicação causa polêmica entre servidores. Desde que integrantes do Judiciário passaram a fazer questionamentos, têm havido reações internas por parte de funcionários que defendem não ser possível tirar a medicação dos jovens. Há monitores que entendem que, se o adolescente quer dormir, deve receber o remédio para isso.

– Em parte, o que o médico diz é verdade. Mas não deveria ter dito, pois sabe que a gestão está trabalhando para acabar com isso. Não é uma realidade de agora. Além disso, a resposta dele deveria ter passado pelo setor jurídico e pela presidência. Agora, eu vou responder a processo – disse ontem a presidente da Fase, Joelza Mesquita.

Joelza voltou a ressaltar que a prescrição de remédios tem de vir acompanhada por um diagnóstico e que vai aumentar o número de psiquiatras na Comunidade Socioeducativa.

– Não é certo medicar porque o menino pediu. Isso tem de acabar.

No começo da semana, em entrevista a Zero Hora, a ministra Maria do Rosário, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, classificou como “crime de tortura” a aplicação de medicamentos de forma excessiva.

ENTREVISTA. “Há coisa mais importante do que medicação para se preocuparem”. Jose Pedro Godoy Gomes Neto, psiquiatra

Zero Hora – O senhor disse à juíza Vera Deboni que, na Fase, os meninos são medicados por causa do ócio.

Jose Pedro Godoy Neto – É. A medicação tem suas indicações, mas haveria uma redução se as pessoas tivessem mais atividades. E não pense que a medicação é feita toda ela contra a vontade. Eles pedem muita medicação também.

ZH – Por que eles pedem?

Godoy – Por ansiedade, mal-estar, é muita pressão. Então, complica. Imagina as pessoas que têm uma certa idade, muitos têm mulheres, famílias, num sistema fechado e com atividade restrita. Tem um futebol lá e uma escola. É complicado. Na minha visão, se eles tivessem outras atividades, haveria redução na necessidade de medicação na CSE, onde atuo desde 2003.

ZH – O senhor fala que os internos pedem a medicação. É uma prática aceitável, dentro da lei, medicar porque o jovem pede?

Godoy – Se tem ansiolítico, se é para ansiedade, é permitido. Não tem problema.

ZH – É alto o índice dos internos que pedem?

Godoy – É alto, sim. Se tu pegares os meninos que fazem o tratamento externo (que estão internados com possibilidade de atividade externa), recebem muito menos medicação do que os meninos que não saem. Por uma obviedade.

ZH – O senhor quer dizer que há outras alternativas além do remédio?

Godoy – Sim. Se tu ajudares, melhorares a vida de uma pessoa, de qualquer doente, vais ver que os sintomas dele vão diminuir automaticamente até sem o uso da medicação. Se medicares, vai melhorar mais.

ZH – O senhor acredita que a medicação pode ser reduzida desde que entrem outros elementos, como escola e mais atividades?

Godoy – Antigamente, não existia medicamento psiquiátrico. As coisas foram mudando, vieram os ansiolíticos porque as pessoas ficavam ansiosas. Já não se toma mais. As pessoas estão tomando medicação para ficar acordadas, trabalhar mais, as ritalinas. Vou dar um exemplo clínico: se tu tens hipertensão, tens de comer pouco, caminhar bastante, não pode te incomodar, tudo que a gente não consegue fazer. Se a gente fizesse tudo isso, não tomava remédio para pressão alta. Passa isso para a psiquiatria, e eu entendo que seja muito parecido.

ZH – Autoridades dizem que, na prescrição, é escrito o “se necessário”. Existem diagnósticos ou se usa o “se necessário” indiscriminadamente?

Godoy – O “se necessário” é assim: imagina o cara vindo algemado, eu chego na frente e ofereço uma medicação. Normalmente, o cara quer me mandar para o inferno. Não quer saber de mim. É feita a medicação para acalmá-lo. Mas podem distorcer, dizer que medicam para fazer mal. Não. Sinceramente, não tenho isso dentro do meu coração. A medicação é feita como forma protetiva.

ZH – O senhor fala em medida protetiva. Autoridades dizem que o excesso de medicação pode fazer mal, prejudicar a pessoa.

Godoy – Quem fala em excesso?

ZH – Integrantes do Judiciário.

Godoy– Se o Judiciário diz que há excesso, eu diria que o Judiciário tem outras medidas que também são um excesso, mas não é da minha área.

ZH – Então existe mesmo o “se necessário”?

Godoy – O “se necessário” existe.

ZH – O “se necessário” não é um risco por permitir que uma pessoa decida quando vai medicar?

Godoy – Toda a medicação é feita pela enfermagem e normalmente ocorre nos momentos de agitação, de ansiedade e com pedido. Até bolei uma ideia em cima dessa história toda: quando o interno quiser medicação, achando que está muito ansioso, ele vai escrever de próprio punho porque está solicitando medicação. Isso é importante, porque ninguém recebe medicação dormindo. Não existe tortura com medicação.

ZH – O senhor diz que não há tortura com medicação. A ministra Maria do Rosário disse que se medicação está sendo ministrada com o “se necessário” e com excesso, isso é crime.

Godoy – Em relação à medicação, estou autorizado a fazer porque tenho um curso. Acho que há coisa mais importante que a medicação para se preocuparem.

ZH – O quê?

Godoy – Está escrito no meu texto (a resposta dirigida à juíza) que tem coisa mais importante, coisas que talvez diminuíssem a necessidade de medicar.

ZH – Um assistente da direção da CSE assina o documento com o senhor. Ele concorda com sua opinião.

Godoy – Ele assina? O que escrevi, escrevi por mim. Fiz essa resposta para a juíza que me perguntava porque alguns internos estavam sendo medicados. Coloquei caso a caso e a minha opinião de por que se medicava dessa forma na Fase.

ZH – O senhor está há três governos na Fase. Nota mudanças?

Godoy – Temos reuniões e tal. Mas do ponto de vista de um real resultado, de mudança, bom, vocês estão vendo aí (faz referência à série de matérias “Meninos Condenados”).

Nenhum comentário:

Postar um comentário