Morte de ciclista no Rio reacende o debate sobre a redução da maioridade penal. É hora de passar do choque à ação e lidar com o tema
ALINE RIBEIRO, CRISTINA GRILLO, HUDSON CORRÊA E THAIS LAZZERI
REVISTA ÉPOCA 30/05/2015
FACADAS
O local do assassinato do ciclista Jaime Gold (à dir.) no Rio de Janeiro, com placas de protesto colocadas por manifestantes. O principal suspeito é um menor de idade (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)
Daniel Gold, de 22 anos, suspeitou que havia algo errado quando, na noite de terça-feira (19), viu a foto que se espalhava pelas redes sociais. O ciclista ensanguentado, estirado na ciclovia da Lagoa Rodrigo de Freitas, parecia com seu pai, o cardiologista Jaime Gold, de 56 anos. O médico havia saído horas antes do apartamento em Ipanema, onde morava com os filhos – Daniel e Clara, de 21 anos –, para dar uma volta com sua bicicleta. Daniel mostrou a foto para Clara, que ligou para o celular do pai. Sem resposta, telefonaram para a mãe, a designer de interiores Márcia Amil, que acabara de ver a mesma foto na internet e, como Daniel, tivera um mau pressentimento. “Quando atendi o telefone, Clara disse: ‘Acho que aconteceu alguma coisa muito ruim com o papai’”, contou Márcia, com voz embargada, a ÉPOCA. No hospital, os filhos reconheceram as roupas do pai, que, naquele momento, já estava havia três horas em uma cirurgia. Cinco horas mais tarde, depois de ter recebido 2 litros de sangue em transfusão e sofrido duas paradas cardiorrespiratórias, Jaime Gold estava morto.
O cardiologista foi vítima de um crime bárbaro, que assustou os cariocas e que, nas últimas semanas, vem se tornando frequente. Atacado de surpresa por dois jovens também em uma bicicleta, foi esfaqueado com violência. Não teve tempo nem de decidir se reagiria ao assalto. Uma testemunha do crime contou aos policiais ter visto os algozes de Gold emparelhar com o médico e se atirar sobre ele, de uma forma que, à testemunha, pareceu ser uma saraivada de socos. Eram facadas. Uma delas cortou de forma tão profunda o abdômen do médico que deixou vísceras à mostra. “A bicicleta não era importada. Era só uma bicicleta. Por causa dessa bicicleta, ele foi estraçalhado”, diz Márcia.
Trinta e seis horas após a morte de Gold, a Divisão de Homicídios capturou um adolescente de 16 anos, suspeito do assassinato. Perto de sua casa, na favela de Manguinhos, Zona Norte da cidade, a polícia encontrou nove bicicletas, uma delas avaliada em R$ 30 mil, e facas e tesouras escondidas em um corredor. Reconhecido por uma testemunha, o adolescente negou ter cometido o crime. Em sua ficha, há 15 anotações por roubos e furtos, a primeira delas aos 12 anos, quando roubou um celular perto de onde Gold foi atacado. Cinco das anotações registram o uso de facas ou tesouras para intimidar as vítimas. Desde sua primeira infração, o adolescente passou três meses em instituições corretivas. Ele está na faixa etária dos 15 aos 17 anos, como 48% dos menores infratores detidos, segundo um levantamento da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (Sinase). O mesmo estudo conclui que 40% desses adolescentes têm envolvimento com roubos e 9% com homicídios. Dos 23.066 adolescentes em unidades socioeducativas no país, 43% foram criados só pela mãe, como o jovem carioca, e 43% são reincidentes. Nesta semana, a polícia apreendeu o segundo adolescente suspeito de participação no crime.
A morte de Gold e outro crime hediondo ocorrido em São Paulo na mesma semana – o estupro de uma menina de 12 anos por três adolescentes pouco mais velhos – trouxeram de volta a discussão sobre a redução da maioridade penal. Não é, como muitos supõem, um debate binário, um dilema entre reduzir ou não reduzir. Existem várias propostas em discussão no Brasil – ÉPOCA lista algumas delas aqui. Em comum, as propostas (com a exceção da que quer manter tudo como está) atentam para uma distorção da situação atual. O procedimento-padrão, baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não diferencia crimes graves de crimes leves. Isso dificulta a punição às infrações como o latrocínio. E também coloca em contato, nas instituições de internação, menores ligados ao crime organizado com outros que cometeram pequenos furtos.
Em São Paulo, um levantamento do Ministério Público mostrou que, de um total de 1.359 menores internados de agosto de 2014 a abril deste ano, 105 cometeram estupro, latrocínio e homicídio – crimes graves, passíveis do tempo máximo de reclusão. Só sete deles, porém, deverão ficar internados por mais de dois anos, e apenas um por três anos. “O prazo de internação é subutilizado porque as unidades estão superlotadas”, afirma Tiago Rodrigues, promotor da infância em São Paulo. A Fundação Casa afirma que o tempo médio de internação é de nove meses e, em caso de crimes graves, de um período mais longo. “A lei determina a brevidade da pena”, diz Berenice Giannella, presidente da Fundação Casa.
Além de colocar em contato menores que cometeram crimes leves com os que cometeram crimes graves, o sistema atual padece de outro problema: a superlotação das instituições de internação. Os Estados com piores índices são Ceará (221%), Pernambuco (178%) e Bahia (160%). Em 20% delas não há refeitório. Pelo ECA, os adolescentes deveriam ser separados por porte físico, idade e tipo de crime. “No Rio de Janeiro, a separação é por facção”, diz Carlos Nicodemos, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Entre os jovens infratores, 71% dizem ter sido agredidos por funcionários e 88% por policiais, na própria unidade de internação. Mais de 10% das unidades registram situações de abuso sexual contra o adolescente. “Com que cabeça um adolescente preocupado com sua integridade sexual numa cela lotada vai prestar atenção na aula no dia seguinte?”, afirma o promotor Rodrigues.
SUPERLOTAÇÃO
Rebelião numa unidade da Fundação Casa em São Paulo, em 2011. A instituição vem falhando na reintegração dos adolescentes (Foto: Marcelo Justo/Folhapress)
Algumas propostas preveem a criação de outro tipo de instituição, que ajude na socialização do menor. É o caso da PEC 33, do senador Aloysio Nunes (PSDB), apresentada em 2012. Ela também prevê a alteração da Constituição para reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, mas somente em casos de crimes hediondos, como tráfico de drogas, tortura, homicídio e terrorismo. Mesmo assim, um juiz decidiria situação a situação. “Esses casos não chegam a 2% do total de crimes cometidos por adolescentes, mas são graves e merecem uma resposta”, afirma Aloysio Nunes. Pela PEC 33, esses adolescentes seriam julgados pela Vara da Infância e do Adolescente e, se comprovada sua capacidade de compreender a gravidade de seus crimes, cumpririam penas em centros especiais – nem na Fundação Casa, nem no sistema prisional para adultos. Essas instalações não existem hoje. A proposta de Aloysio Nunes ainda não foi colocada em pauta.
Para melhor compreender o crime que chocou o país há duas semanas, é necessário colocá-lo em perspectiva. Os homicídios diminuíram 7,5% na cidade do Rio no primeiro quadrimestre de 2015, em relação ao mesmo período de 2014, mas os roubos de rua aumentaram 7,5%. Uma comissão de segurança criada pelos ciclistas recebe por dia de dois a três comunicados de assaltos. Nos últimos dois meses, o uso de facas tornou-se constante. Os assaltos ocorrem com maior intensidade na Lagoa e no Aterro do Flamengo, na Zona Sul carioca, e nas imediações do Estádio Maracanã, na Zona Norte. Os criminosos nem sempre prestam atenção na marca da bicicleta. Roubam e depois decidem o que fazer. As menos valiosas serão usadas em outros assaltos. As mais caras, que custam até R$ 50 mil, terão suas peças revendidas em um mercado ilegal em franco crescimento. Presidente da comissão de segurança de ciclistas, o atleta de triatlo Raphael Pazos faz um alerta: “Sem nota fiscal e em site suspeito na internet, você pode estar comprando a bicicleta de alguém que foi esfaqueado”.
Entre os bandidos, popularizou-se o uso de armas brancas – facas, tesouras, estiletes. Em fevereiro, o turista alemão Fred Nicfind, de 51 anos, morreu esfaqueado em um assalto. Recentemente, uma turista vietnamita foi atingida nas costas e uma chilena foi esfaqueada no pescoço. No dia seguinte ao ataque a Gold, uma mulher de 31 anos ficou ferida nas pernas em São Conrado, Zona Sul. Nas imediações da Lagoa, outros três ciclistas foram feridos a golpes de faca em abril. A lei federal de 2003, que regulamenta o porte de armas, nada fala sobre facas ou instrumentos cortantes usados em crimes. Qualquer pessoa pode carregar uma lâmina afiada na mochila sem grandes problemas com a polícia.
É natural que as autoridades tenham dificuldades de explicar e propor solução para a onda de esfaqueamentos, mas isso não justifica declarações infelizes do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) e do secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame. Um dia depois do ataque a Gold, Pezão disse que “quando (um bandido) usa a faca, não é um crime de grande monta que faça a pessoa ficar presa”. Corrigiu-se depois, afirmando que a legislação brasileira tem falhas e o Judiciário acaba soltando os agressores. No dia 12 de maio, Beltrame afirmara que a polícia não pode virar “babá de menores de idade, de moradores de rua, e ficar 24 por horas olhando a pessoa para ver o que ela vai fazer com uma faca”. Após o crime da Lagoa, gravou um vídeo no qual afirma que, “mais do que lamentável, é inadmissível” o assassinato ocorrido na Lagoa. Em vez de dar declarações impensadas, as autoridades fariam bem em avaliar as várias propostas em debate para lidar com o problema. Beltrame tem razão. Lamentar não adianta. Por isso, é hora de conversar seriamente sobre o assunto.
Infográfico sobre menor infrator (Foto: época )
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