terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

ABRIGOS INSALUBRES, OBRAS LENTAS



ZERO HORA 03 de fevereiro de 2015 | N° 18062


FERNANDA DA COSTA

INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA. EXCESSO DE IRREGULARIDADE

EM PORTO ALEGRE, demora em investimentos e reparos faz com que, se ritmo atual for mantido, casas públicas só consigam resolver em 2018 os problemas para atender crianças e adolescentes


Após sofrerem maus-tratos ou abuso sexual, crianças transferidas aos abrigos públicos de Porto Alegre são obrigadas a conviver com ratos e esgoto a céu aberto – e há meses a situação permanece inalterada. No atual ritmo de reparos dos locais apontados como insalubres pelo Ministério Público (MP), Estado e município só oferecerão casas seguras para essas vítimas da violência doméstica em 2018.

Além dos problemas estruturais que colocam em risco a saúde dos acolhidos, MP e Justiça ainda avaliam o atendimento desses abrigos como ineficiente. A precariedade é tanta que, em julho de 2014, apenas uma das 47 casas não oferecia perigos à saúde das crianças, conforme inspeções do MP. Apesar de alertas do órgão sobre a possibilidade de interdição, Estado e município só conseguiram sanar irregularidades perigosas em sete locais nos últimos cinco meses.

O ritmo de reparos corresponde a uma casa com ameaças corrigidas a cada 22 dias. As últimas vistorias do MP, realizadas em dezembro de 2014, mostram que 38 das 46 casas ativas – uma passava por reforma e não abrigava crianças – apresentaram irregularidades que colocam os abrigados em risco. O número de casas perigosas corresponde a 83% do total dos abrigos em funcionamento.

Os documentos do MP também revelam, além da não resolução de problemas antigos, a carência de manutenção nesses locais. Nas últimas vistorias, o órgão apontou 49 novos itens que representam perigo a crianças e adolescentes.

Em quase 20% dos abrigos foram encontradas escadas, janelas e varandas sem proteção, e, em alguns, materiais de limpeza ao alcance das crianças, irregularidades que podem levar à morte, conforme o pediatra Ércio Amaro de Oliveira Filho, diretor da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e do Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremers):

– A criança vê aquela embalagem colorida e quer pegar. Pode derramar nos olhos ou ainda ingerir, o que é um risco enorme.

Há beliches sem proteção em metade das casas e fiação exposta em quase 20% delas. Colchões de espuma muito fina e de má qualidade, reclamação de muitos acolhidos ao MP por causarem dores nas costas, foram achados em 13%.

RATOS, FIOS SOLTOS E O CHÃO COMO CAMA

A falta de camas também obriga crianças e adolescentes a dormirem no chão. Eles ainda têm de conviver com problemas como esgoto a céu aberto e até ratos. Mais alarmante é que, para quem vive há pelo menos seis meses nessas casas, muitas ameaças não são novidade. Apesar de terem sido apontadas pelo MP em relatórios anteriores, 35 irregularidades que causam risco à saúde dos acolhidos não foram resolvidas.

– Por serem vítimas de violência, essas crianças sofrem uma ruptura da estrutura familiar e ficam com uma marca para a vida inteira. Por isso, essas instituições de acolhimento precisam ser boas, capazes de oferecer um cuidado que seja o mais próximo possível de uma família – explica a psicóloga Caroline Martini Pereira, presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CRP) do Estado.

Responsável pela fiscalização dos abrigos no MP, a promotora Cinara Vianna Dutra Braga avalia que a habitabilidade melhorou, mas ainda é preciso investir mais:

– É visível o esforço para melhorar as casas, mas ainda há um caminho longo, principalmente na insalubridade e no atendimento.



Para MP e Justiça, atendimento precisa melhorar com urgência


O maior desafio das fundações que mantêm os abrigos é qualificar o atendimento, apontam Ministério Público (MP) e Justiça. Responsável pela fiscalização no MP, a promotora Cinara Vianna Dutra Braga explica que as falhas privam a convivência familiar – biológica ou adotiva – e condenam crianças a viver em abrigos, que, por lei, são moradias temporárias.

O tempo máximo de permanência nos abrigos não pode ultrapassar dois anos, estipula o Estatuto da Criança e do Adolescente. O problema é que os furos no atendimento fazem a lei ser descumprida, explica a promotora.

Ela conta que há casos de acolhidos que chegam bebês e saem aos 18 anos. Há crianças sem as ações de acolhimento (que oficializam a estadia), processos de destituição familiar (trâmite necessário para adoção) ou até fora do cadastro nacional de adoção.

Na comparação das inspeções do MP, a carência dos servidores quase triplicou. Enquanto em julho faltavam seis servidores, em dezembro eram 15, entre eles psicólogo, fonoaudiólogo, assistente social, cozinheira e faxineira.

Responsável pelas audiências com acolhidos, a juíza Sonáli da Cruz Zluhan tem ido a abrigos para ouvir crianças e funcionários. E a avaliação é a mesma do MP:

– Visitei uma casa que acolhe um surdo, mas ninguém sabe Libras. Ele não consegue se comunicar, então é comum ter de gritar quando precisa de alguma coisa.

Um dos motivos, diz a magistrada, é que os profissionais trabalham “totalmente sobrecarregados”. A juíza conta que encontrou casos de crianças desligadas oficialmente dos abrigos que ainda residem nos locais e de novos acolhidos que não receberam sequer um plano de atendimento, necessário para trabalhar com a criança.

Sonáli já instaurou duas portarias para apurar irregularidades na estrutura e no atendimento das casas João de Barro e Quero-Quero onde, segundo ela, há ambientes depredados, abrigados ficam sem atividades e não há rotina.




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