sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

MAIORIDADE PENAL LIBERTA, MAS NÃO PROTEGE A TODOS



JORNAL DO COMÉRCIO 27/02/2015


OPINIÃO




Que opção faria um adolescente vivendo nas chamadas favelas na periferia das grandes cidades brasileiras, caso pudesse escolher entre trabalhar dois turnos em uma empresa e receber R$ 1.100,00 mensais brutos, ou ser entregador de drogas das quadrilhas que só aumentam no País no rastro do consumo em alta e receber R$ 600,00 por semana dos traficantes? Infelizmente, precisa-se de poucos segundos para chegar à triste e óbvia resposta, a segunda opção, na maioria dos casos. E com as drogas estão associados quase todos os crimes de morte praticados hoje em dia.

Então, basta de discussões estéreis, quando nós mesmos não coibimos o sexo quase explícito nas tevês, muita publicidade baseada na exposição do corpo de mulheres e aliada ao consumo de bebidas alcoólicas, mais os filmes e desenhos violentos, uma cultura que é inculcada desde quando nossos filhos são crianças. Não temos muito tempo para mudar este quadro, uma vez que os resultados levarão alguns anos para aparecerem. Da mesma forma que se passaram duas décadas, praticamente, para colhermos os frutos da leviandade, da licenciosidade, da impunidade, da desagregação familiar e da falta de orientação escolar e religiosa. A verdade é que os pais e avós de hoje, crianças e jovens adultos no final dos anos de 1960/1970, descobriram que têm menos tempo para viver doravante do que as décadas vivenciadas, ou seja, muitos, se não todos, têm mais passado do que futuro, cronologicamente falando.

A mediocridade tomou conta de muitos setores da vida pública e privada do Brasil, na qual o que importa é exibir automóveis e roupas de marca por parte dos que têm egos para lá de inchados. Temos debates intermináveis para discutir assuntos em que o senso comum apontou as soluções há anos, pois muitas pessoas não discutem o conteúdo dos problemas, porém, apenas os seus rótulos.

Por isso, após crimes brutais, volta ao debate a questão da maioridade penal. Parece claro, para boa parte da população, que a imputação de crimes como sendo de autoria de jovens com menos de 18 anos se tornou um mantra. Na legislação vigente, são aplicadas penas que não ultrapassam três anos e medidas socioeducativas. Claro, o espírito da lei, a ideia do então legislador, foi a de não trancafiar nas infectas prisões nacionais pessoas que cometeram deslizes sem maior poder ofensivo. No entanto, a certeza que se tem é que não passou pela cabeça dos votantes das leis que hoje vigoram que elas serviriam para proteger bandos de maiores bem-estruturados. O pior de tudo é que se mata em dó nem piedade. No entanto, não se conseguirá remediar os males da sociedade enquanto não se falar nem reconhecer as suas causas e origens imediatas. E é isso, justamente, que o Brasil quer discutir. Qualquer pessoa não é correta suficientemente se não tiver nobreza, caráter e probidade. Acrescentaríamos educação e trabalho.

Ora, está ficando claro que a grande inclusão social feita no País nos últimos anos não ajudou a estancar a escalada de crimes. Cada vez mais cruéis e, segundo experimentados policiais, em busca de automóveis e armas, que são a grande e popular moeda de troca por drogas. Essas rendem muito dinheiro e entram pelas nossas fronteiras das maneiras as mais diversas. Os crimes sempre existiram em Porto Alegre, São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas jamais se viu tamanha periodicidade e crueldade.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

VENDA DE BEBIDAS ALCOÓLICAS PARA ADOLESCENTES SEM CONTROLE E SEM FISCALIZAÇÃO

ZERO HORA 21/02/2015 | 05h04


Venda de bebidas para adolescentes ocorre praticamente sem controle no centro de Atlântida. "Se fôssemos fiscalizar, teríamos de evacuar a praça", avalia um policial

por Débora Ely




Estirada no chão e aparentando embriaguez, menina consumia rum comprada por uma prima Foto: Diego Vara / Agencia RBS


Adolescentes fazem da praça central de Atlântida – ponto apelidado de Centrinho – uma festa onde pode tudo. Distantes da vigilância dos pais e desprotegidos por uma fiscalização que não dá conta da demanda, menores de 18 anos abusam do consumo de álcool nas noites de verão.

– Se fôssemos fiscalizar, teríamos de evacuar a praça. Tem muito adolescente consumindo, e muito adulto comprando – admitiu um dos cinco policiais militares que monitoravam a área na madrugada da segunda-feira de Carnaval.


Dezenas de adolescentes formavam rodas para compartilhar as garrafas de vidro – na grande maioria, de bebidas destiladas. Com copos de plásticos, produziam na hora misturas com refrigerantes, ingeridas como se fossem água. Duas amigas de 16 e 17 anos compartilhavam o pouco que ainda restava de rum em uma garrafa.

– Quem comprou foi uma prima – revelou uma das meninas, aparentando embriaguez logo após se levantar da calçada, onde se estirou por alguns instantes.

Carteira de identidade é pouco pedida a jovens

Mesmo com a fiscalização intensificada pelo Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca) desde dezembro no Litoral Norte, há estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas para adolescentes sem pedir carteira de identidade. Quem garante são os próprios, acostumados com a infração à lei.

– É tranquilo. Só em alguns lugares não nos vendem – relatou um menino de 16 anos, acompanhado de quatro amigas de 15.

Para tentar resguardar-se de denúncias, estabelecimentos comerciais da área instalaram câmeras nos caixas para comprovar que não cometem o crime de venda de álcool para crianças e adolescentes, previsto nos artigos 81 e 243 no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Pelas normas, é proibida a venda e o fornecimento "de produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica". Mas essa não é a regra: parte dos comerciantes não respeita a lei.

– Se tiver trocadinho, melhor – pediu a atendente de um minimercado ao cobrar quatro garrafas de Smirnoff Ice de um jovem que não aparentava mais do que 16 anos.

Foi a única solicitação da mulher ao cliente, que nem retirou a identidade da carteira – e ainda levou uma carteira de cigarros.

Risco de exposição a situações de risco




Pela associação de calor e festas, a ingestão de bebidas pode aumentar no verão não apenas entre os jovens, mas também entre os adultos, avalia a psicóloga Eva Maria Fayos Garcia.

– Os adolescentes não podem acessar algumas festas porque são menores, mas que alternativas de divertimento eles têm? Tem de servir de alerta, se não estamos falando de uma geração que está abandonada. Eles estão em fase de experimentação, precisam criar outros vínculos além do familiar, mas ainda necessitam de supervisão – analisa.

Pelos efeitos da embriaguez, adolescentes podem expor-se a situações de risco, como violência sexual e relações sem o uso de preservativo.

O período de férias tende a ser mais crítico devido à ausência das atividades escolares. Segundo o psiquiatra da área de infância e adolescência do Hospital de Clínicas Thiago Pianca, o hábito de pais deixarem os filhos mais "soltos" na praia, pela percepção de maior segurança, deixa-os com controle menor.

– Tem uso de álcool o ano inteiro pelos adolescentes. Na época de férias, pode ser que aumente um pouco por ter mais festas, porque, de maneira geral, eles não bebem sozinho, mas em grupo. Mas os pais, em sua maioria, têm sido liberais em todos os ambientes – alerta.

Desde o fim de 2014, a Polícia Civil visita estabelecimentos do Litoral Norte para alertar sobre a proibição de venda de álcool para adolescentes.

– Se mais pessoas denunciarem, melhor para fazermos o trabalho de investigação. Não posso dizer que essa prevenção terá 100% de resultado, mas acreditamos que possa reduzir – diz a diretora do Deca, Adriana Regina da Costa.

Punição esbarra em interpretação

A punição para quem vende álcool para crianças e adolescentes esbarra na interpretação da lei pela autoridade que atende à ocorrência. Se o enquadramento do flagrante for pelo artigo 243 do ECA, quem cometeu o crime é encaminhado à delegacia e deverá cumprir pena que varia de dois a quatro anos de detenção. Se o entendimento for baseado na Lei de Contravenções Penais – como ocorre na maioria dos casos –, a pessoa assinará um termo circunstanciado e responderá na Justiça.

Por parte da Brigada Militar, o veraneio se despede sem uma única ofensiva à contravenção. Conforme o comandante do Batalhão de Policiamento de Áreas Turísticas da corporação, coronel Almiro Damasio, as ações ocorrem exclusivamente mediante denúncia.

– Alguém foi responsável pelo fornecimento. Ou o estabelecimento cometeu a irregularidade fornecendo, ou algum adulto adquiriu e forneceu. Em ambos os casos, há infração – afirma, reprovando a conduta dos PMs que estavam de plantão na madrugada de segunda-feira e nada fizeram para coibir a venda de bebida alcoólica a adolescentes em Atlântida.




ZERO HORA 03/05/2014 | 15h03

Longe de casa, adolescentes bebem brindando à ingenuidade adulta e ao desrespeito à lei. Consequências podem ser observadas em postos de gasolina, clubes ou salões de festas de Porto Alegre

por Larissa Roso e Letícia Duarte




Em frente a clubes, jovens passam mal. O motivo: o uso abusivo de álcool antes das festas Foto: Carlos Macedo / Agencia RBS


É comum pais externarem uma certeza em relação aos filhos que saem para uma festa no final de semana: “Meu filho não bebe”, “Minha filha só toma um golinho”, “Ele sabe o limite”.

Longe de casa, os adolescentes brindam à ingenuidade dos adultos e ao desrespeito à lei que proíbe a venda de bebida para menores de idade: “Eles sabem que eu bebo, mas não imaginam o quanto”, “Roubei Jägermeister do meu pai”, “Ninguém pede carteira de identidade”.

As consequências desse descompasso podem ser observadas em postos de gasolina, clubes ou salões de festas. Em pouco tempo, os jovens sucumbem ao alto teor alcóolico do que ingerem.

Nesta reportagem, ZH mostra um retrato dos exageros frequentes nas noites de Porto Alegre, a capital que lidera o consumo de bebida alcoólica por adolescentes no país.

Da festa para a enfermaria

A chuva não apressa meninos e meninas que desembarcam dos carros dos pais. Abrigam-se sob árvores, marquises e orelhões, retardando a entrada na Associação Israelita Hebraica, no bairro Bom Fim, na sexta-feira, 11 de abril, onde começa a festa Stop and Go, para adolescentes a partir de 14 anos. Compartilham garrafas de vodca, ingerida pura e em misturas com refrigerante de limão ou energético.

Dentro do clube, está proibida a venda de álcool, e do lado de fora se intensifica o consumo para compensar a restrição. Isis* é um dos muitos jovens já trôpegos pouco depois da meia-noite. Encostada na grade de um prédio residencial próximo, está alheia à negociação travada a sua frente. Mantém-se de pé porque um dos três amigos que a acompanha a segura contra as barras de ferro.

– Vamos, moça – insiste o segurança.

– Água – balbucia Isis, a saliva pingando do queixo.

Os jovens se apavoram com a possibilidade de a mãe de Isis ser alertada, em casa, sobre o estado da filha. Tentam demover o funcionário do clube da intenção de levá-la até a ambulância contratada pelos organizadores, estacionada perto dali.

– Ela já vai melhorar. Eu vou falar com ela – pede uma menina, engrolando as palavras.

Irritado com o diálogo desconexo, o homem interrompe os apelos das vozes arrastadas, ergue Isis no colo e a leva para dentro da Hebraica. Outros seguranças circulam pelas calçadas recolhendo garrafas vazias e dispersando as aglomerações mais ruidosas. Um menino cambaleante provoca gargalhadas: procura se firmar apoiando a bochecha na parede enquanto abre a braguilha para urinar. Com as calças caindo, logo é enlaçado em um beijo por uma menina. Abraçam-se, desequilibram-se, trançam as pernas e quase caem.

– Vamos lá, casalzinho apaixonado – alerta um segurança. – É uma creche – reclama.

Cheiro de vômito na sala de entrada

No tráfego intenso da Rua General João Telles, motoristas ignoram a ciclovia e param junto ao meio-fio. Uma mulher não arranca enquanto não se certifica de que a filha passou pela portaria. Logo transfere o olhar para um menino de camiseta encharcada sentado no chão, indiferente ao piso molhado, a cabeça apoiada nas mãos.

– É muito cedo. Já estão assim – lastima ela.

Afirma conhecer o garoto de vista. Observa-o por alguns minutos, atônita.

– Minha filha não bebe. Ela sabe que não pode beber – assegura, antes de partir.

Durante a semana, a Wazzap?!, produtora da festa, alertou no Facebook que não permitiria a entrada de menores de idade apresentando sinais de embriaguez. “Kkkkkkk”, desdenhou um adolescente em um dos posts, “rindo” na linguagem de internet. Muitos são admitidos apesar da bebedeira.

Joel Fridman, presidente da Hebraica, afirma que foi combinado com a Wazzap?! que haveria um bafômetro na entrada para impedir o acesso de jovens alcoolizados. Adolescentes com sinais de embriaguez seriam encaminhados à enfermaria, onde aguardariam a chegada dos pais, em segurança.

Gabriel Rodrigues de Freitas, sócio da Wazzap?!, alega que a empresa de segurança contratada não dispunha de bafômetro e que a produtora teve dúvidas quanto à viabilidade legal de impor o uso do aparelho a menores de idade.

– Temos entre 40 e 50 casos de embriaguez prévia por festa. Esta mos começando uma campanha para tentar diminuir o consumo.

Há uma enfermaria improvisada no térreo, de onde exala um fortíssimo cheiro de vômito. É o primeiro e último destino de quem não consegue subir a escadaria rumo à pista de dança – Isis é um dos pacientes em atendimento. Em um sofá em frente à porta guardada por um segurança, à vista de todos, dois rapazes dormem, encostados um no outro, caídos para a direita – um deles é o que, minutos antes, tentava fazer xixi na rua. Patrícia, representante do clube, não larga o celular, contatando familiares.

– Estou aqui com a Luciana. Ela está passando muito mal – informa por volta da 1h. – Ela está alcoolizada – esclarece.

Despertados de súbito, alguns interlocutores, desnorteados, custam a entender. No susto, cogitam até ocorrências mais graves, como acidentes de trânsito e lesões sérias. É frequente a incredulidade.

– Minha filha não faz isso – reage uma mãe.

Equipe se esforça para contatar pais

Patrícia recepciona pais de passo acelerado que demandam explicações. Um menino se adianta e detém a contrariedade do pai com um abraço.

– Desculpa – pede ele, recebendo um beijo.

A equipe se esforça para localizar os responsáveis por dois que estão desacordados – um não conseguiu pronunciar o telefone de contato, o outro forneceu um número errado. Uma enfermeira segura um cesto de lixo diante do que está em pior estado, aparando o vômito. Massageia as costas e os braços para reanimá-lo. O segurança aborda os passantes pedindo ajuda:

– Ô, meu, não conhece esse magrão aí?

Na porta da enfermaria, a mãe de Isis se apresenta. Encontra a filha em uma poltrona, incapaz de levantar. Conta que a jovem não costuma tomar nem o champanha para o brinde de Ano-Novo. É orientada a levá-la direto para o Hospital de Pronto Socorro. Isis sai como entrou: inerte, carregada por um segurança.

– E são recém 2h – lamenta Patrícia.

"Por favor, uma Natasha"

Com um litro de vodca Natasha e um copo de plástico vermelho revezando entre as mãos, as amigas Luana, 15 anos, e Paula, 17 anos, chegam de táxi ao Clube Farrapos no fim da noite de sexta-feira, 4 de abril. Como tradição, a festa começa na calçada. Antes de entrarem na festa, por volta da 1h, a garrafa comprada uma hora antes já está um terço consumida.

Com riso frouxo, as duas colegas contam como é fácil adquirir o álcool que em teoria seria proibido para sua faixa etária. Sequer precisaram de intermediários para fazer a compra, na loja de conveniência de um posto de combustível na Avenida Nilo Peçanha – conhecido point teen.

– A gente vai na cara dura mesmo – explica Paula.

– Tem que chegar segura de si e dizer: “Oi, por favor, uma Natasha”. Com atitude – conta Luana, que aparenta mais idade com figurino mulherão: blusa de oncinha, bota cano alto, microssaia preta.

Ninguém pediu a identidade quando compraram a bebida. Se pedissem, estariam prevenidas. Laura leva na bolsa a carteira de motorista da irmã mais velha – que tirou uma nova via quando pensou ter perdido o documento. Paula usou o scanner e a impressora de casa, no bairro MontSerrat, para emitir um documento falso.

– Essa eu fiz hoje às sete da noite – mostra a estudante, entre risos.

Aos 15, Luana bebe regularmente e já se sente experiente – como boa parte das colegas, seu primeiro porre foi aos 14 anos. Diz que seus pais sabem que bebe, mas não imaginam o quanto.

– Acham que eu não fico bêbada, que só fico feliz – ri.

Os seguranças da Festa das Tintas, que reúne mais de mil jovens naquela noite, impedem a entrada de garrafas no clube. Mas isso não significa que os frequentadores deixem de beber. Com os documentos falsos, Luana e Paula ingressam com pulseirinha de “maior”. Paula paga R$ 15 por uma cerveja.

– Dá pra ver que a identidade é falsa, mas eles deixam passar – diz.

O coronel Alcery Frota Pinto, vice-presidente administrativo do Clube Farrapos, diz que ficou “horrorizado” com o que assistiu naquela noite, com jovens caídos pelos cantos e um saldo de oito vidros quebrados no fim da noite:

– Não sabíamos que seria uma festa de jovens, alugamos o salão pensando que seria uma festa particular. Aqui dentro não pode beber, mas já chegam bêbados. Vi um pai que encostou o carro e desceram cinco jovens, já embriagados. Agora proibimos essas festas. Não vamos ser coniventes com esse tipo de coisa.

Mãe ajuda a comprar

Na casa de Paula, beber não é uma transgressão. Sua mãe não apenas sabe que ela bebe como chegou a acompanhar a filha na compra de destilados. O assunto veio à tona às vésperas de uma “noite” agendada pela turma da filha no condomínio onde moravam, no bairro MontSerrat, no ano passado.

– Mãe, a gente tem que comprar as comidas e as bebidas – avisou a filha, aluna do segundo ano do Ensino Médio.

– Tá, mas comprar o quê? – questionou a empresária de 39 anos.

A mãe já sabia que a turma da filha andava bebendo. No ano anterior, no primeiro encontro no condomínio onde moram, se surpreendera ao encontrar garrafas de vodca e tequila vazias no final da festa.

Em vez de proibir o consumo, imaginando que o veto seria facilmente driblado, desta vez a mãe preferiu acompanhar a filha ao supermercado. Entre as compras do carrinho, incluíram garrafas de vodca, tequila e energéticos.

– Eu não proíbo ela de beber, porque todo mundo um dia vai beber, mas converso para que respeite o limite dela própria. Na turma dela, a maioria acaba fazendo tudo escondido, o que é pior – justifica.

A estratégia de Magda segue a linha da redução de danos. Ao acompanhar a filha no supermercado, orientou a garota a dar prioridade à compra dos salgadinhos que seriam servidos na noite.

– Se deixar eles compram só a bebida – diz.

A mãe diz confiar na capacidade de discernimento de Paula. Mas já observou que nem sempre os adolescentes sabem respeitá-lo. Na terceira festa em sua casa, encontrou colegas da filha passando mal de tanto beber. E começou a repensar sua posição de fornecer álcool aos adolescentes.

– Agora já disse que chega, não quero essa responsabilidade. Vai que aconteça alguma coisa. Vão perguntar: quem comprou? – reflete.

Números

Porto Alegre é a capital brasileira campeã no consumo de álcool entre estudantes de 13 a 15 anos do 9º ano do Ensino Fundamental, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgada em 2013.

O estudo ouviu 1.455 alunos em 52 escolas.

36,7% dos entrevistados consumiram bebida alcoólica nos 30 dias anteriores.

81,9% das meninas já experimentaram álcool. Entre meninos, o percentual é de 75,3%

Em Florianópolis, a segunda colocada, o índice foi de 34,1%

Os menores percentuais foram encontrados em Belém (17,3%) e Fortaleza (17,4%).

A média brasileira foi de 26,1%

Fonte: Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) do IBGE



A pressão pelo primeiro porre


Giovana sempre foi a certinha da escola. Enquanto os colegas aprontavam desde os 13 anos, levando doses de bebidas alcoólicas escondidas para festas em tubos de Cepacol, ela e suas amigas mais próximas se orgulhavam de não precisar beber para se divertir.

Mas, na medida em que o tempo passava, a curiosidade aumentava. Giovana queria entender que sensação era aquela, que fazia com que os colegas parecessem aproveitar bem mais a festa do que ela.

No final de 2013, aos 15 anos, decidiu que era hora de experimentar. A oportunidade surgiu numa formatura de oitava série. Como de costume, o pai de uma das amigas deu carona até a festa. Só que, em vez de entrarem no clube, ela e outras duas amigas se dirigiram a um posto nas redondezas. Chegando lá, compraram vodca. Quando saíam, um segurança da festa apareceu.

– Vocês tão bebendo, não vão entrar na festa – repreendeu.

As três meninas se olharam. Chegaram a hesitar.

– Ah, mas eu já tô aqui, já fiz o que minha mãe disse para eu nunca fazer, que era sair da festa, então vou beber – raciocinou Giovana.

Ao experimentar a vodca diluída em energético, Giovana sentiu repulsa. Achou o gosto muito ruim.

– Não tem um jeito de fazer isso mais rápido? – perguntou aos colegas que as acompanhavam.

– Só se tu tomar pura.

Giovana não teve dúvidas. Virou um copo de vodca em “gute-gute”.

Enquanto bebiam na calçada, uns conhecidos passaram por ela e zombaram.

– Ih, isso aí nem pega.

Sentindo-se desafiada, Giovana virou o segundo copo.

Enquanto voltavam para o clube, começou a sentir tonturas.

– Ah, não te faz – duvidaram as amigas, que haviam bebido o destilado com energético.

Ao chegar na festa, a tontura só piorou. Foi para um canto e encontrou um colega em estado parecido.

– Bá, vou vomitar – avisou ele.

Giovana vomitou junto, no canto do salão.

Ao perceberem seu estado, as amigas a carregaram para o banheiro. E foi ali que ela “morreu”, como dizem no jargão adolescente quando a pessoa passa muito mal. Foi levada para uma ambulância.

Horas depois, a mãe levou um choque quando a filha abriu a porta de casa, pedindo perdão.

– A gente sempre acha que na casa da gente não vai acontecer. Mas a pressão do grupo é muito grande – constatou a mãe.

O choque de uma mãe

Janaína estava encarregada, naquela noite, de buscar a filha Mariana e a amiga Renata ao final de uma festa. O telefonema da mãe de Renata, por volta da 1h, obrigou-a a sair mais cedo de casa:

– Tô levando a minha filha e não sei cadê a tua.

Renata nem chegou a entrar na festa – caiu bêbada do lado de fora, depois de comprar vodca em um posto de combustíveis. Janaína partiu imediatamente para localizar Mariana. Na frente de uma casa de eventos localizada no Jardim Europa, deparou com vans vendendo bebida e dezenas de adolescentes em atendimento junto a uma ambulância. Tentaram detê-la, transtornada, na entrada do evento. Pediram que se acalmasse. Quando conseguiu passar, a médica levou um susto ao abrir a porta: uma menina embriagada caiu por cima dela. O que viu a seguir a impactou profundamente.

– Era degradante, uma orgia. Jovens que pareciam em transe, meninos com a mão dentro das calcinhas das meninas no meio do salão, na frente de todos, quase cenas de sexo explícito. Estavam todos alcoolizados, os olhos arregalados, vários sendo carregados para fora. Não sou careta, babaca, moralista, mas fiquei apavorada. Estamos falando de pessoas de 13, 14 anos de idade – lembra.

Janaína demorou a localizar a filha, que estava um pouco alterada, “fora do prumo”. No dia seguinte, abalada, a mãe não conseguiu tocar no assunto, culpando-se pela demora em perceber o tipo de ambiente que a estudante começava a frequentar. Uma decisão foi tomada em seguida: Mariana estava proibida de frequentar eventos semelhantes, o que motiva frequentes confrontos entre ambas até hoje, quase um ano depois. As saídas noturnas não foram de todo suspensas.

Desde então, a jovem participou de comemorações de 15 anos, também marcadas por excessos – a gurizada é servida por barmen contratados pelos anfitriões, ficando à vontade para escolher quantas doses querem em cada drinque. Janaína determinou que Mariana não pode consumir qualquer quantidade de álcool.

– Não tem negociação. Sei que ela vai transgredir em algum momento, mas agora ela é muito jovem, muito imatura. Algo precisa ser feito, este é um sintoma de adoecimento cultural e social de grandes proporções que estamos deixando passar batido, enquanto nos ocupamos em pagar escolas privadas de alto custo, atividades extraclasse, viagens, roupas, próteses de silicone – revolta-se.

Tentativa de reação


Desde 2012, um ônibus do Ministério Público estaciona diante das festas de formatura, para identificar casos de adolescentes embriagados e chamar os responsáveis. A atenção ao tema começou há cerca de cinco anos. Provocada por um grupo de pais preocupado com as festinhas regadas a álcool, a instituição atuou junto às produtoras para assegurar a proibição de venda de bebidas alcoólicas para adolescentes. A medida deu resultado, só que produziu um efeito inesperado: para driblar a proibição, os adolescentes começaram a beber na frente dos clubes.

Para lidar com o problema, foi criado em 2011 o Fórum Permanente de Prevenção à Venda e ao Consumo de Bebidas Alcoólicas por Crianças e Adolescentes. Em reuniões mensais e abertas ao público, pais, professores, médicos, policiais, produtores de festas e representantes de instituições interessadas discutem como enfrentar o problema. Uma das propostas em estudo é a colocação de bafômetros na entrada das festas. Assim, adolescentes alcoolizados ficariam impedidos de entrar.

A vulnerabilidade a que os jovens ficam expostos quando bebem é uma das preocupações do fórum, coordenado pela procuradora Maria Regina Fay de Azambuja. Em um dos atendimentos, foi encontrada uma menina desacordada nas macegas, com vestidinho curto erguido e expondo as partes íntimas.

Para intensificar suas ações e proibir festas em residências onde menores de idade consomem álcool, o MP pede o auxílio da população. Segundo Maria Regina, o maior empecilho é a escassez de denúncias – sem saber antecipadamente a data e o local dos eventos, o órgão não pode notificar os pais.

Outro obstáculo é a interpretação da lei: o artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê como crime a venda e o fornecimento de “produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica”, com previsão de até quatro anos de detenção. Para alguns, o álcool não estaria incluído entre esses produtos, leitura que acaba inviabilizando a aplicação das penalidades.

Riscos que se estendem além do porre

Engana-se quem pensa que os efeitos do álcool no organismo se esgotam quando acaba o porre.

Especialmente entre os adolescentes, o risco é maior porque nesta fase o cérebro está em um período crucial de formação – e o álcool pode comprometer esse desenvolvimento.

Uma das consequências associadas é o maior risco a se tornar alcoólatra. De acordo com o National Institute on Drug Abuse, dos Estados Unidos, 15,2% dos que começam a beber aos 14 anos tendem a desenvolver o alcoolismo, enquanto, entre os que esperam até os 21 anos ou mais, o índice é de 2,1%.

A relação é química, explica o psiquiatra do Hospital de Clínicas Thiago Pianca, especialista em crianças e adolescentes. No cérebro adolescente, o córtex pré-frontal, responsável pelo autocontrole, ainda não está totalmente formado. Com o uso de álcool, pode nunca se desenvolver. Já o circuito de recompensa, associado ao prazer, está plenamente desenvolvido nesta idade.

– O adolescente está pronto para o prazer, mas não tem o mecanismo de freio – alerta Pianca.

Sem autocontrole, a tendência de abuso de substâncias químicas é cada vez maior. Com o tempo, o usuário precisa de doses para ter o mesmo prazer.

Autora de uma tese de doutorado sobre o uso de álcool entre estudantes de Ensino Médio, a enfermeira Efigenia Aparecida Maciel de Freitas tem percebido o aumento de um hábito conhecido como binge drinking – a ingestão de grande quantidade de bebida em um curto período para acelerar a embriaguez.

– Os jovens começam a ter essa cultura: “Quanto consigo consumir nesse tempo?” Querem ficar alterados logo para aproveitar melhor a festa – afirma Efigenia.

As consequências do consumo abusivo

Sem noção de limites, os adolescentes acabam expostos a riscos adicionais quando bebem demais.

E as consequências não se restringem a ver o mundo girar: não raramente, seus passos cambaleantes podem parar na delegacia, no hospital, em exposição íntima na internet.
Para Benício, o choque de realidade veio aos 16 anos, em uma noite no apartamento de um colega.

Nenhum dos 20 reunidos estranhou quando Jonatan bebeu demais e foi deitar num dos quartos quando não parava mais em pé. De tempo em tempo, Benício ia até o dormitório para ver como o amigo estava, até que, numa das aproximações, Jonatan agarrou seu pé e jogou seu calçado pela janela do segundo andar.

– Por que tu fez isso, cara? Fica aí que eu vou lá embaixo buscar – reagiu.

Enquanto Benício procurava pelo pátio seu sapato, ouviu um grito de pavor. Olhou para o lado e viu uma mão esticada no chão. Desesperou-se ao perceber que era Jonatan estirado no concreto. Embriagado, havia caído do segundo andar. A festa acabou no Pronto Socorro. Felizmente, os ferimentos de Jonatan naquele dia se restringiram a uma lesão no tornozelo.

Cristina, 16 anos, também exagerou na combinação de vodca e energético. Em um feriado prolongado recente, saiu à noite com uma amiga. A certa altura da festa, perderam-se uma da outra – Cristina não recorda de detalhe algum sobre o que fez até o amanhecer.

Despertou em uma casa distante, na companhia de dois jovens, ambos maiores de idade. Refazendo-se do susto resultante da imprudência, surpreendeu-se, semanas depois, ao saber que fotos íntimas suas estavam circulando na internet. Não teve coragem de olhá-las.

Mais números

O primeiro contato com álcool e cigarro costuma ocorrer aos 13 anos.

35,3% dos alunos afirmam terem experimentado bebida pela primeira vez na casa de amigos.

Para 28,7%, o gole inicial foi em casa, com pessoas do convívio diário.

O consumo abusivo é mais frequente entre os meninos:

70,2% deles relataram episódios de uso excessivo de bebida.

39,5% dos meninos e 33,2% das meninas praticaram o binge drinking (consumo de grande quantidade em curto espaço de tempo) no mês anterior à pesquisa.

47% dos pais nunca conversaram com os filhos, ou conversaram poucas vezes, sobre as consequências do uso de bebidas alcoólicas.

Fonte: Consumo de Bebidas Alcoólicas e Outras Substâncias Psicoativas entre Estudantes do Ensino Médio de Uberlândia-MG, tese de doutorado de Efigenia Aparecida Maciel de Freitas


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO RS SOBRE 22% EM CINCO ANOS

Zero Hora 20/02/2015 | 04h01

por Eduardo Rosa


Apreensão de adolescentes no Rio Grande do Sul sobe 22% em cinco anos. De 2010 a 2014, a estatística avançou de 25.156 para 30.704



Nos últimos cinco anos, a apreensão de adolescentes no Rio Grande do Sul aumentou 22%. O número se torna mais alarmante quando comparado com prisões de adultos no mesmo período, que tiveram diminuição de 1,5%. Os dados são da Secretaria da Segurança Pública.

De 2010 a 2014, as apreensões de adolescentes avançaram de 25.156 para 30.704, enquanto as detenções realizadas pela Brigada Militar e pela Polícia Civil passaram de 192.497 para 189.897. O resultado do ano passado mostra que houve 84 apreensões de adolescentes por dia no Estado.

– Infelizmente, os adolescentes estão praticando mais atos infracionais em decorrência até de um problema social. Cada vez mais, com idade menor, estão ingressando no crime – ressalta a diretora do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (Deca), Adriana Regina da Costa, acrescentando que o aperfeiçoamento do trabalho das duas corporações também contribui para a elevação.



Na avaliação da juíza Vera Deboni, do 3º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, grande parte das apreensões diz respeito a atos infracionais leves, como furto, desacato e briga. Isso é demonstrado pela quantidade de internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase).

Conforme os dados da instituição atualizados em fevereiro, há 1.038 pessoas nas unidades de internação e 109 nas unidades de semiliberdade. Ou seja, as medidas restritivas representam 4% das apreensões do ano passado. Outros casos resultam em medidas como liberdade assistida, prestação de serviço à comunidade e advertência.


Adriana destaca, entre as infrações mais comuns, o tráfico de drogas e o roubo. Vera ressalta o peso da venda de entorpecentes nos casos envolvendo menores de 18 anos e cita diferentes fatores:

– Primeiro, o empoderamento da ameaça e do constrangimento que o tráfico tem nas comunidades vulneráveis. Ainda temos muitos adolescentes apreendidos que estão guardando a droga para o adulto, são os depositários. Hoje, temos, como um reflexo do domínio do tráfico em determinadas comunidades, o aumento de adolescentes envolvidos.

Juíza analisa postura de escolas
Para a juíza, o aumento no número de apreensões de adolescentes pode estar ligado a uma postura de grande parte das escolas de resolver conflitos na delegacia de polícia. Ela cita uma janela quebrada (dano) ou uma briga (vias de fato) como situações em que poderiam ser buscadas alternativas ao registro no Deca.

– Pela gravidade muito pequena, ele (adolescente) vai voltar à escola. O colégio vai continuar sendo o lugar do conflito sem saber lidar com ele. Precisamos pensar em como instrumentalizar a instituição com outras formas de agir que não seja produzir essa estatística – afirma a magistrada.

A diretora do Deca enfatiza a diferença no trabalho da Polícia Civil em ocorrências envolvendo adolescentes quando comparado com o voltado a adultos. Uma delas é a integração com outras instituições, como Ministério Público, Defensoria Pública e Judiciário, que funcionam no mesmo prédio em Porto Alegre.

— A gente procura também trabalhar com a questão social. Tem acompanhamento com assistente social, com psicóloga, para que dê resultado não só no processo criminal. A gente procura dar um suporte na questão social — diz a delegada, lembrando que os policiais fazem trabalho preventivo em instituições de ensino, por exemplo.


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Estes indicadores mostram o abandono dos adolescentes por parte das leis e da justiça, por fomentar uma cultura da impunidade, deseducadora para futuros cidadãos.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

PRIORIDADE ZERO



ZERO HORA 03 de fevereiro de 2015 | N° 18062


por Letícia Duarte



No reino das boas intenções, os abrigos existem para garantir a crianças maltratadas ou negligenciadas um ambiente saudável para crescer, substituindo em algum momento aqueles cuidados essenciais que a família, pelas mais diversas razões, não consegue dar.

Na prática, a precariedade dos serviços públicos de acolhimento impõe uma segunda (e por vezes terceira, ou quarta) violação a infâncias já maculadas por abusos dos mais variados tipos.

As consequências são dramáticas. Nos três anos em que acompanhei a trajetória de um menino que vivia nas esquinas de Porto Alegre para produzir a reportagem Filho da Rua, publicada em junho de 2012, constatei de perto como essa ineficiência agrava o problema. Diante da incapacidade da mãe de segurar o filho Felipe, que fugia de casa desde os cinco anos e desde os oito era dependente de crack, a guarda do menino foi concedida provisoriamente a um abrigo municipal em 2008, quando tinha 10 anos. Mas a instituição também se revelou incapaz de segurá-lo. Em quatro meses, o menino fugiu três vezes.

– Que abrigo é esse que criança foge? – indignou-se a mãe.

À reportagem, a coordenação da instituição admitiu que as fugas eram rotina. Na época, em espaço para 30 crianças, havia 64 – e apenas seis educadores sociais em cada turno.

– Quando se olha para o lado, um já pulou o muro – confidenciou um dos educadores.

Sem o devido amparo, Felipe voltou para as ruas e para o crack, repetindo uma rotina conhecida de degradação – que ameaça outros destinos.

De lá para cá, administradores de diferentes gestões gastam saliva tentando explicar as falhas do serviço, mas a verdade é que nada justifica o descaso que impera nos abrigos.

Se antes os problemas mais conhecidos eram superlotação e falta de pessoal, a constatação de que crianças hoje dormem }no chão por falta de camas e disputam espaço até com ratos é uma violência imperdoável contra aqueles que, na legislação brasileira, aparecem como “prioridade absoluta”. Mais do que inadmissível, é um escândalo.




ABRIGOS INSALUBRES, OBRAS LENTAS



ZERO HORA 03 de fevereiro de 2015 | N° 18062


FERNANDA DA COSTA

INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA. EXCESSO DE IRREGULARIDADE

EM PORTO ALEGRE, demora em investimentos e reparos faz com que, se ritmo atual for mantido, casas públicas só consigam resolver em 2018 os problemas para atender crianças e adolescentes


Após sofrerem maus-tratos ou abuso sexual, crianças transferidas aos abrigos públicos de Porto Alegre são obrigadas a conviver com ratos e esgoto a céu aberto – e há meses a situação permanece inalterada. No atual ritmo de reparos dos locais apontados como insalubres pelo Ministério Público (MP), Estado e município só oferecerão casas seguras para essas vítimas da violência doméstica em 2018.

Além dos problemas estruturais que colocam em risco a saúde dos acolhidos, MP e Justiça ainda avaliam o atendimento desses abrigos como ineficiente. A precariedade é tanta que, em julho de 2014, apenas uma das 47 casas não oferecia perigos à saúde das crianças, conforme inspeções do MP. Apesar de alertas do órgão sobre a possibilidade de interdição, Estado e município só conseguiram sanar irregularidades perigosas em sete locais nos últimos cinco meses.

O ritmo de reparos corresponde a uma casa com ameaças corrigidas a cada 22 dias. As últimas vistorias do MP, realizadas em dezembro de 2014, mostram que 38 das 46 casas ativas – uma passava por reforma e não abrigava crianças – apresentaram irregularidades que colocam os abrigados em risco. O número de casas perigosas corresponde a 83% do total dos abrigos em funcionamento.

Os documentos do MP também revelam, além da não resolução de problemas antigos, a carência de manutenção nesses locais. Nas últimas vistorias, o órgão apontou 49 novos itens que representam perigo a crianças e adolescentes.

Em quase 20% dos abrigos foram encontradas escadas, janelas e varandas sem proteção, e, em alguns, materiais de limpeza ao alcance das crianças, irregularidades que podem levar à morte, conforme o pediatra Ércio Amaro de Oliveira Filho, diretor da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e do Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremers):

– A criança vê aquela embalagem colorida e quer pegar. Pode derramar nos olhos ou ainda ingerir, o que é um risco enorme.

Há beliches sem proteção em metade das casas e fiação exposta em quase 20% delas. Colchões de espuma muito fina e de má qualidade, reclamação de muitos acolhidos ao MP por causarem dores nas costas, foram achados em 13%.

RATOS, FIOS SOLTOS E O CHÃO COMO CAMA

A falta de camas também obriga crianças e adolescentes a dormirem no chão. Eles ainda têm de conviver com problemas como esgoto a céu aberto e até ratos. Mais alarmante é que, para quem vive há pelo menos seis meses nessas casas, muitas ameaças não são novidade. Apesar de terem sido apontadas pelo MP em relatórios anteriores, 35 irregularidades que causam risco à saúde dos acolhidos não foram resolvidas.

– Por serem vítimas de violência, essas crianças sofrem uma ruptura da estrutura familiar e ficam com uma marca para a vida inteira. Por isso, essas instituições de acolhimento precisam ser boas, capazes de oferecer um cuidado que seja o mais próximo possível de uma família – explica a psicóloga Caroline Martini Pereira, presidente da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CRP) do Estado.

Responsável pela fiscalização dos abrigos no MP, a promotora Cinara Vianna Dutra Braga avalia que a habitabilidade melhorou, mas ainda é preciso investir mais:

– É visível o esforço para melhorar as casas, mas ainda há um caminho longo, principalmente na insalubridade e no atendimento.



Para MP e Justiça, atendimento precisa melhorar com urgência


O maior desafio das fundações que mantêm os abrigos é qualificar o atendimento, apontam Ministério Público (MP) e Justiça. Responsável pela fiscalização no MP, a promotora Cinara Vianna Dutra Braga explica que as falhas privam a convivência familiar – biológica ou adotiva – e condenam crianças a viver em abrigos, que, por lei, são moradias temporárias.

O tempo máximo de permanência nos abrigos não pode ultrapassar dois anos, estipula o Estatuto da Criança e do Adolescente. O problema é que os furos no atendimento fazem a lei ser descumprida, explica a promotora.

Ela conta que há casos de acolhidos que chegam bebês e saem aos 18 anos. Há crianças sem as ações de acolhimento (que oficializam a estadia), processos de destituição familiar (trâmite necessário para adoção) ou até fora do cadastro nacional de adoção.

Na comparação das inspeções do MP, a carência dos servidores quase triplicou. Enquanto em julho faltavam seis servidores, em dezembro eram 15, entre eles psicólogo, fonoaudiólogo, assistente social, cozinheira e faxineira.

Responsável pelas audiências com acolhidos, a juíza Sonáli da Cruz Zluhan tem ido a abrigos para ouvir crianças e funcionários. E a avaliação é a mesma do MP:

– Visitei uma casa que acolhe um surdo, mas ninguém sabe Libras. Ele não consegue se comunicar, então é comum ter de gritar quando precisa de alguma coisa.

Um dos motivos, diz a magistrada, é que os profissionais trabalham “totalmente sobrecarregados”. A juíza conta que encontrou casos de crianças desligadas oficialmente dos abrigos que ainda residem nos locais e de novos acolhidos que não receberam sequer um plano de atendimento, necessário para trabalhar com a criança.

Sonáli já instaurou duas portarias para apurar irregularidades na estrutura e no atendimento das casas João de Barro e Quero-Quero onde, segundo ela, há ambientes depredados, abrigados ficam sem atividades e não há rotina.