sábado, 31 de março de 2012

EQUÍVOCO CONTRA A INFÂNCIA

EDITORIAL ZERO HORA 31/03/2012

No ano em que se comemora o 22º aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma decisão proferida na terça-feira pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) suscita uma série de interrogações sobre a proteção à infância. Ao julgar processo em que o réu é acusado de ter mantido relações sexuais com três adolescentes, todas de 12 anos, a Terceira Seção da Corte decidiu que atos sexuais com menores de 14 anos podem não ser tipificados como estupro de vulnerável.

O crime de estupro de vulnerável está tipificado desde 2009 no Código Penal e é assim definido no caput do Artigo 217-A: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. A pena prevista é de oito a 15 anos. O Parágrafo 1º diz: “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.

Cabe aqui uma breve explicação. Antes da reforma do Código Penal em 2009, a prática de atos sexuais com menores de 14 anos era tipificada como crime contra a dignidade sexual com presunção de violência, sujeito a ação penal pública condicionada a representação, ou seja, a provocação do Ministério Público pela vítima ou seus representantes legais. Com a nova redação, a mesma prática se torna alvo de ação penal pública incondicionada se a vítima for “pessoa vulnerável”, entre outros requisitos. Embora o conceito de “vulnerável” seja discutível, é razoável supor que esteja abrangido pela expressão utilizada no Parágrafo 1º: “alguém que (...) não pode oferecer resistência”.

A relatora do processo julgado pela Terceira Seção, ministra Maria Thereza de Assis Moura, afirmou: “Com efeito, não se pode considerar crime fato que não tenha violado, verdadeiramente, o bem jurídico tutelado – a liberdade sexual –, haja vista constar dos autos que as menores já se prostituíam havia algum tempo”. Para alguns críticos da decisão, como a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, por outro lado, esse entendimento representaria uma perigosa relativização dos direitos de crianças e adolescentes.

Trata-se de um entre tantos casos nos quais, mais do que procurar encontrar na letra fria dos códigos um espelho da viva e complexa realidade, devem os magistrados interpretar a lei com base no pressuposto de boa-fé dos legisladores. Parece desarrazoado imaginar que, ao tipificar o estupro de vulnerável no Código Penal, deputados e senadores tenham desejado deixar uma porta aberta à prostituição de menores pela via da inimputabilidade de adultos que se escondem atrás da condição de “clientes”. Nesse sentido, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Alexandre Camanho de Assis, afirmou: “Imaginar que uma menina de 12 anos – notavelmente em situação de exclusão social e vulnerabilidade – estaria consciente de sua liberdade sexual ao optar pela prostituição é ultrajante”.

De forma correta, o presidente do STJ, Ari Pargendler, advertiu que a decisão da Terceira Seção, conquanto baseada em critérios técnicos, pode ser revista pelo Pleno da Corte.

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