domingo, 16 de dezembro de 2012

O ÚLTIMO DRIBLE DE PELEZINHO


ZERO HORA 16 de dezembro de 2012 | N° 17285

INFÂNCIA

Garoto bom de bola e aluno estudioso, Adriano Santos dos Santos, 14 anos, era o “exemplo do bem” na Vila Cruzeiro. Os tiros que o mataram abateram também uma comunidade. Zero Hora refaz a trajetória do garoto e o impacto da morte dele numa região da Capital assolada pela violência


KAMILA ALMEIDAFOTOS: ADRIANA FRANCIOSI

O Ás de Ouro da Vila Cruzeiro encerrou suas atividades há uma semana, depois que o craque do time foi executado. Lucio Mauro Sousa dos Santos é técnico da equipe e pai de Adriano Santos dos Santos, 14 anos, morto a tiros a 200 metros de casa. Aos 41 anos, Santos não vê sentido em seguir ecoando seu apito pelos campos da várzea. O “exemplo do bem” virou alvo de briga de gangue.

– O Lucio, como treinador, que pega as crianças para jogar, sem verba sem nada, que vive explicando o que é certo e o que é errado, vai dizer o que para as crianças se acontece uma coisa dessas com o guri que era o exemplo do certo? – questiona a madrasta de Adriano, Maria Inês da Rosa, 44 anos.

O pai está paralisado. Tem dificuldades em formular frases que expressem a dor. Mantém o olhar perdido e assente com a cabeça a opinião da mulher.

Nem ele, nem a mãe, nem a madrasta, nem os amigos conseguem encontrar respostas para o que aconteceu às 21h daquela quinta-feira de calor denso, 6 de dezembro.

Na Rua Ursa Maior, famílias, mulheres e crianças buscavam uma brisa. De boné, Adriano conversava com os amigos na esquina de casa, no Beco do Lula, sentado em uma pedra, de costas para a rua, quando um táxi estacionou. Três homens desembarcaram dizendo que eram da polícia. Todos correram. Adriano apenas se levantou e ficou parado. Foi alvejado com tiros de pistola 9 mm pelo corpo e espingarda calibre 12 na cabeça.

Ele estava ao telefone com a tia, querendo saber notícias da mãe. A ligação foi interrompida pelos disparos. Do outro lado da linha a tia escutou as últimas palavras do sobrinho:

– Ai, acho que tomei um tiro.

Adriano caiu segurando o telefone, o aparelho que havia comprado em agosto último e do qual não desgrudava. Estava entrando na fase das paqueras e varava madrugadas jogando conversa fora. Comprava cartões da operadora de celular e gastava os bônus com as namoradinhas – o garoto ficava horas a fio em conversas ao telefone com colegas de sala de escola.

SONHAVA SER JOGADOR E COMPRAR CASA PARA MÃE

Vaidoso, usava a habilidade com a bola para aumentar a fama entre as meninas. Eram as qualidades técnicas no futebol que faziam o menino sonhar. Quando entrava em campo na Vila Pedreira, levantava a torcida. Ia gente de longe assistir ao show do guri. No currículo, mais de 20 troféus e medalhas. Tinha a fama de entrar e definir as partidas.

– Ele não queria ser como o Neymar, queria ser como o Pelé, queria ter mais dinheiro que o Neymar. Sonhava em comprar um carro, um apartamento. Dizia que ia me tirar da vila – lembra a mãe Neuza Maria Couto dos Santos, 36 anos.

Eram projetos confidenciados apenas para a mãe. Para os demais, demonstrava sonhos pueris: jogar por jogar. Nos planos mais recentes, imaginava uma festa de aniversário com os amigos. Completaria 15 anos no dia 26 de janeiro. A mãe compraria carne e refrigerante. Ele ajudaria com a quantia que ganha de pensão.

PAI, VÁRZEA E INTER ERAM OS PILARES
O pai era conhecido na vila pela rigidez. Ostentava o bom comportamento do filho. Reconhecia a destreza com a perna esquerda, sabia que era um talento natural, mas sempre deixou claro que ele precisava treinar muito ainda se quisesse se destacar no meio. Com quatro anos já fazia acrobacias com a bola, na frente de casa, no mesmo beco onde morreu.

– Ele era marrentinho. “Eu que faço a diferença no teu time”, ele repetia até quando não jogava nada – brinca o pai.

O menino franzino, que media menos de 1m60cm, era um meia-esquerda habilidoso. A velocidade nos gramados fez com que os amigos o apelidassem de Pelezinho. Para a família, era o Dri.

O educador físico Rafael Soares da Rocha, 33 anos, professor de Adriano na Escola Rubra do Sport Clube Internacional, onde treinava, ficou em choque quando soube da morte.

– O guri era tranquilo. Nunca soube de envolvimento dele com droga, essas coisas. Vinha sempre disposto a aprender. Se continuasse jogando assim teria todas as condições de se tornar profissional.

Ser filho de treinador fazia dele um ótimo estrategista. Estava sempre perto do professor dando dicas, alertando sobre um colega mais agressivo em campo, que chegava mais forte no adversário. Essa preocupação com a harmonia do time chamava a atenção de Rafael.

Os dribles criativos despertavam interesse em times adversários. O garoto que não admitia usar outra camisa que não a 10, não largava o time do pai. Tempos atrás um olheiro o chamou para participar do Peneira Caldeirão, programa da Rede Globo comandado pelo apresentador Luciano Hulk. Naquele dia o tempo fechou no morro, e por causa de um tiroteio não conseguiu sair. Perdeu a seleção que ocorria no Beira-Rio.

Também foi por meio de um olheiro que foi parar no Inter, com direito a bolsa de estudos na Escola Rubra. Há quatro anos, treinava nos campos de grama sintética do Parque Gigante. Para se manter no esporte, precisava apresentar atestado de frequência escolar e boletim em dia.

Oração no lugar dos festejos de Natal

A Escola Elpídio Ferreira Paes, no bairro Cristal, onde Adriano cursava a quinta série na turma 153 também ficou em luto. Suspendeu as atividades no dia posterior à morte. Os festejos de Natal no último sábado foram substituídos por uma oração e um manifesto público clamando por segurança e pelo fim da morte de inocentes. As professoras também passam pelo dilema do pai, de explicar o acontecido para as turmas.

Na quinta-feira, dia da missa de Sétimo Dia, Lucio foi até a escola pegar o boletim. Adriano havia passado por média para a sexta série. Mas as dificuldades eram muitas. Maria conta que o menino tinha um problema na fala, que se refletia nas provas de Português e nas redações, já que ele trocava algumas letras. Há três anos, deu início ao tratamento com uma fonoaudióloga.

Família, disciplina e oportunidades

A rotina de Adriano incluía escola do Inter nas manhãs de terça e quinta-feira, treinos na vila com o time do pai nas tardes de quarta e quinta-feira, fonoaudióloga na segunda-feira e torneios aos sábados.

Mas não foram apenas a agenda preenchida de atividades, a rigidez e o exemplo de ter pais trabalhadores – a mãe diarista, o pai pedreiro – que o mantiveram no caminho. Ser tão correto surpreendia até a Dona Neuza:

– Era uma coisa dele. Não gostava de andar “embolado” com os guris que faziam coisas erradas. Era uma criança, jogava videogame e futebol. Nunca ia para longe sem me avisar.

A pensão que o pai dava todo mês, ele guardava para itens que considerava de primeira necessidade: perfume, roupa, creme para o corpo e material escolar.

No dia seguinte à morte, quando a mãe se desfez dos pertences do garoto, encontrou a carteira com o dinheiro da pensão intacto. Estava juntando para comprar uma chuteira nova, já que a de tamanho 36 estava apertada. A nova 37 levaria o nome da irmã recém-nascida bordado.

Isadora nasceu há um mês. No começo, Adriano, que era o bebê da casa, ficou enciumado. Depois, não desgrudava mais da menina.

– Isa, o maninho te ama – foi uma das últimas frases que disse horas antes de morrer.

PERPLEXIDADE DE UMA COMUNIDADE EM LUTO

Na vila onde nasceu e se criou, a bala que vitimou Pelezinho tombou uma comunidade. Todos enchem os olhos ao lembrar do menino brincalhão, covinhas salientes, pernas arqueadas, dentes brancos em contraste com a pele negra.

Uma passeata foi organizada na última quarta-feira, quando dezenas de pessoas caminharam em direção à 20° Delegacia da Polícia Civil. Buscavam explicações.

– Eu quero justiça. Era um guri bom, nunca se envolveu com drogas. – emociona-se a mãe.

De acordo com o delegado Luciano Peringer, titular da Delegacia de Homicídios da Capital, foram identificados suspeitos. Supostas desavenças com os irmãos mais velhos de Adriano, os gêmeos de 18 anos Lucas e Wagner, podem ter motivado a execução.

– O menino não tinha ocorrência como infrator. Acreditamos que a execução tenha tido um efeito intimidatório para dar um recado aos irmãos – diz Peringer, tentando encontrar razão para o crime que entristeceu a Vila Cruzeiro.

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