JOÃO UBALDO RIBEIRO - O ESTADO DE SÃO PAULO 25/12/2011
Uma vez falei aqui contra a chamada lei da palmada e fiquei com medo de sofrer uma tentativa de linchamento. Falei contra a lei e não a favor da palmada, mas fui amplamente descrito como um primitivo nordestino, defensor da tortura de criancinhas. Então acho que devo esclarecer que apanhei bastante em pequeno e até admito que o muito que há de torto em minha cabeça possa ser ligado a essas tundas, que iam bastante além de palmadas, em detalhes que não me dá gosto lembrar. No meu currículo, arrolam-se chinelos, tamancos, cabos de escovas, palmatórias (não só em casa, mas também na escola da professora Madalena, em Itaparica), cinturões de todos os materiais, beliscões, puxavantes de orelha, um ocasional cachação e aparentados.
Contudo, embora tenha as naturais queixas, pois que apanhar nunca me pareceu boa coisa, não desejei vingar-me disso nem com os autores das surras, nem com seus descendentes através de mim. Continuei a me dar bem com meus pais até o fim da vida deles e jamais bati em meus filhos, nem sequer com palmadinhas. Aliás, minto. Uma vez, em Salvador, minha filha mais velha, então com uns 5 anos, aprontou tanto e tão incontrolavelmente, que eu também me descontrolei e dei um palmadaço nela. Primeiro e único, porque, assim que vi sua carinha subitamente aterrorizada pela surpresa violenta, me senti um espécie de monstro. Exagero, claro, mas continuo pessoalmente contra não só palmadas como qualquer castigo físico.
Além disso, agora compreendo que devo manifestar-me a favor da lei da palmada. Em primeiro lugar, somos um país que protege muito. Não há ninguém que não esteja protegido - jovens, idosos, mulheres, homossexuais, consumidores, corruptos com direito a foro especial e quem mais nos ocorrer. O menor de idade mesmo é protegido por todos os lados. Creio que é exemplar o caso de um menor que faça 18 anos no dia 10 e, durante um assalto no dia 9, mate o assaltado somente pelo prazer de experimentar o revólver novo. Já vi casos assim, ou piores, em reportagens de televisão. Como somos um país rigoroso quanto à aplicação da lei, o delegado, embora privadamente tenha convicção oposta, é, assim como o juiz, obrigado a fazer valer a norma. Dura lex, sed lex. Portanto, matar com 17 anos e 364 dias é, por assim dizer, permitido, não dá nada. Já matar aos 18 anos pode dar cana séria, ainda que raramente. É talvez oportuno lembrar o episódio havido em Brasília e noticiado nos jornais, em que um homem assassinou a namorada e, no dia seguinte, foi à delegacia, levando a arma e o cadáver, e confessou o crime. Deu lá seu depoimento e foi solto na hora. Eu não conto essas maravilhas a meus amigos estrangeiros porque eles não acreditam, nós somos um país abençoado demais.
Mas desculpem, saí do assunto. O assunto é a lei da palmada. Devo reconhecer que nunca vi o texto do projeto e só sei dele o que ouço e leio aqui e ali. Em meu favor, porém, posso alegar que, como praticamente todos nós, não sou bem cidadão, mas súdito. Esse negócio de dar penada em nossa própria vida não é para nós. Como ensina a história da lei de ficha limpa, o que nós queremos não tem nada a ver com o que fazem do País, a gente não tem nada que se meter. Eles resolvem as coisas e nós vamos sabendo aos poucos, isso quando interessa que a gente saiba, para poder fazer o que eles mandam.
Eu ia dizendo que parece ser meu dever manifestar-me a favor da lei da palmada, que estende a proteção estatal sobre uma categoria desamparada. Antigamente, as crianças podiam ser surradas, afogadas, esfoladas ou fritas, não havia lei que as protegesse. Agora, sim, agora haverá, com certeza também através de novos órgãos oficiais, novos especialistas, funcionários, verbas e assim por diante - os legisladores não esquecem essa prioridade nacional, a criação de postos de trabalho. E a rede não se limita ao Estado. Entram nela, por exemplo, sogras e vizinhos. Calculem quantas sogras, por esse Brasil afora, fiscalizarão as mulheres de seus queridos filhos, essas desmazeladas sem educação doméstica. Não haverá palmada que não seja denunciada à polícia e prevejo que esse mar de proteção poderá espraiar-se de tal forma que teremos delegacias das palmadas e um Disque Palmada 24 horas por dia.
Tenho um pouco de preocupação, é bem verdade, com a obediência à lei, notadamente por pais e mães recalcitrantes ou de outras culturas. Fico pensando na possibilidade de certas situações. Imagino que, denunciada por ter dado meia dúzia de palmadas no Ranulfinho, a mãe do Ranulfinho deva receber a visita de um psicólogo oficial, que tentará demonstrar-lhe a inadequação e inaceitabilidade científica e legal do castigo físico. Ao que a mãe do Ranulfinho, que sempre foi da pá virada e ostenta cabelinhos na venta, diz que o psicólogo é psicólogo lá pras negas dele e que o sacaneta do Ranulfinho vai apanhar toda vez que tornar a abrir a geladeira, morder um pedaço de tudo o que tem lá dentro, deixar a porta aberta e emporcalhar a cozinha toda. Como de fato, dias depois há nova denúncia e novamente a mãe do Ranulfinho manda o governo pastar. Para encurtar a história, virá depois do psicólogo um psiquiatra, a mãe do Ranulfinho dirá que o psiquiatra se meta com a mãe dele e reincidirá, não restando recurso, senão cadeia mesmo. E, já que o pai do Ranulfinho apoia sua mulher, far-se-á a retirada da guarda do Ranulfinho e seus três irmãozinhos. Naturalmente que serão separados, porque ninguém poderá ficar com a guarda dos quatro. E, se não houver parentes ou amigos dispostos, o Estado tomará a si a guarda deles e, enquanto os pais mofam na justa cadeia, eles serão criados na mesma instituição modelar em que foi várias vezes confinado o menor que matou dois e feriu quatro, para experimentar o revólver. O Brasil se aperfeiçoa cada vez mais, o Ranulfinho é um menino de sorte.
Crianças desprotegidas, abandonadas, negligenciadas, sem amor, sem futuro, nos semáforos, vendidas, ao relento, violentadas e dependentes de drogas. Menores infratores depositados em lugares insalubres e inseguros, sem receber tratamento, oportunidades, educação, qualificação e reinclusão social. CADÊ OS PAIS? CADÊ A JUSTIÇA?
domingo, 25 de dezembro de 2011
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
LEI DA PALMADA É BRANDA
PROIBIÇÃO BRANDA. Lei da Palmada é aprovada sem criminalizar agressões. Câmara modifica texto do ECA proibindo punição física, mas prevê apenas tratamento para quem violar - ZERO HORA 15/12/2011
A Comissão Especial da Câmara aprovou ontem, por unanimidade, projeto de lei que proíbe os pais de aplicarem castigos físicos nas crianças e adolescentes. O projeto, no entanto, não estabelece nenhum tipo de criminalização para pais que baterem nos filhos.
Conhecida como Lei da Palmada, a proposta que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) segue para o Senado sem a necessidade de votação em plenário pelos deputados federais.
Houve alterações no texto do artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A expressão “castigo corporal” foi trocada por “castigo físico” e “dor” por “sofrimento”. Na prática, não é preciso haver dor para os castigos às crianças serem proibidos. Um tapa, por exemplo, fica proibido por fazer a criança sofrer, mesmo que não necessariamente doa.
Pelo projeto, os pais ou responsáveis pela criança ou adolescente na qual aplicarem castigo físico não são criminalizados, mas podem ser encaminhados a programas de acompanhamento psicológico, cursos de orientação e receber advertências de juízes de varas de infância.
– Não há interferência na família. Não há punição dos pais. Serão feitas campanhas esclarecendo como educar sem o uso da violência. O que vai existir é a informação de que bater não educa – declara a relatora Teresa Surita (PMDB-RR).
Passa a ser obrigação de médicos, professores e agentes públicos denunciar castigos físicos, maus-tratos e tratamento cruel. Não fazê-lo pode acarretar multa de três (R$ 1.635) a 20 salários mínimos (R$ 10.900).
Quando a punição não deixa marcas, a aplicação do castigo físico terá de ser comprovada por testemunhas, depoimentos ou laudos psicológicos. E vai depender da interpretação do juiz responsável pelo caso. Presidente da Comissão de Direito da Família da OAB, o advogado Nelson Sussumo Shikicima ressalta que, sem provas documentais ou flagrantes, a Justiça pode enfrentar dificuldades para estabelecer culpas e definir punições.
– A aplicação da lei não será fácil. E, então, pode ser que ela nem aconteça na prática – resume Shikicima.
Enviado há um ano e cinco meses pelo governo federal ao Congresso, o projeto aprovado ontem contou com o aval do Executivo.
– Se você pensar que os animais não são mais adestrados com violência, por que não pensar em uma educação para poder proteger uma criança sem fazer violência física? – argumentou a secretária Nacional de Direito da Criança e do Adolescente, Carmem Oliveira, que foi à Câmara acompanhar a votação da lei.
A Comissão Especial da Câmara aprovou ontem, por unanimidade, projeto de lei que proíbe os pais de aplicarem castigos físicos nas crianças e adolescentes. O projeto, no entanto, não estabelece nenhum tipo de criminalização para pais que baterem nos filhos.
Conhecida como Lei da Palmada, a proposta que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) segue para o Senado sem a necessidade de votação em plenário pelos deputados federais.
Houve alterações no texto do artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A expressão “castigo corporal” foi trocada por “castigo físico” e “dor” por “sofrimento”. Na prática, não é preciso haver dor para os castigos às crianças serem proibidos. Um tapa, por exemplo, fica proibido por fazer a criança sofrer, mesmo que não necessariamente doa.
Pelo projeto, os pais ou responsáveis pela criança ou adolescente na qual aplicarem castigo físico não são criminalizados, mas podem ser encaminhados a programas de acompanhamento psicológico, cursos de orientação e receber advertências de juízes de varas de infância.
– Não há interferência na família. Não há punição dos pais. Serão feitas campanhas esclarecendo como educar sem o uso da violência. O que vai existir é a informação de que bater não educa – declara a relatora Teresa Surita (PMDB-RR).
Passa a ser obrigação de médicos, professores e agentes públicos denunciar castigos físicos, maus-tratos e tratamento cruel. Não fazê-lo pode acarretar multa de três (R$ 1.635) a 20 salários mínimos (R$ 10.900).
Quando a punição não deixa marcas, a aplicação do castigo físico terá de ser comprovada por testemunhas, depoimentos ou laudos psicológicos. E vai depender da interpretação do juiz responsável pelo caso. Presidente da Comissão de Direito da Família da OAB, o advogado Nelson Sussumo Shikicima ressalta que, sem provas documentais ou flagrantes, a Justiça pode enfrentar dificuldades para estabelecer culpas e definir punições.
– A aplicação da lei não será fácil. E, então, pode ser que ela nem aconteça na prática – resume Shikicima.
Enviado há um ano e cinco meses pelo governo federal ao Congresso, o projeto aprovado ontem contou com o aval do Executivo.
– Se você pensar que os animais não são mais adestrados com violência, por que não pensar em uma educação para poder proteger uma criança sem fazer violência física? – argumentou a secretária Nacional de Direito da Criança e do Adolescente, Carmem Oliveira, que foi à Câmara acompanhar a votação da lei.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
POLÍTICA PARA OS JOVENS
EDITORIAL ZERO HORA 01/12/2011
O Brasil dos adolescentes brasileiros está desconectado do Brasil dos adultos, que evolui economicamente e oferece oportunidades de ascensão profissional e social cada vez mais escassas nos países ricos. No país de quem tem de 15 a 17 anos, um quinto dos jovens está fora da sala de aula. O dado é um desalento que o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) oferece às autoridades como alerta, em relatório sobre a situação da adolescência no Brasil. O documento é um retrato sombrio de uma etapa da vida decisiva para a definição de futuros individuais e coletivos. Quando deveriam se afirmar como cidadãos, milhões de adolescentes brasileiros são tratados com descaso por sucessivos governos. O relatório do Unicef tem o poder de denunciar o fracasso das políticas públicas em educação, em saúde, em ações contra a violência e na criação de perspectivas concretas de mudanças, em especial entre jovens de famílias de baixa renda.
São muitas as consequências desse desleixo, que produzirá efeitos perversos durante um longo período, como adverte o Unicef. Jovens que abandonam a escola desperdiçam chances e são os mais vulneráveis aos apelos da criminalidade e aos danos de todo tipo de violência. Os números são implacáveis: de cada grupo de 100 mil pessoas da faixa etária de 12 a 17 anos, 19 foram assassinadas no Brasil em 2009. São 11 homicídios de meninos e meninas por dia. A taxa de mortalidade de outra faixa, de 15 a 19 anos, é o dobro da registrada entre a população geral. Os jovens brasileiros morrem de forma violenta por morarem em áreas sequestradas pela delinquência, por se envolverem direta ou indiretamente com o crime e também porque são vítimas de acidentes de trânsito.
Não deixa de ser um paradoxo que o país tão eficiente na condução de sua economia seja o mesmo omisso em relação aos adolescentes, que representam um contingente de 21 milhões de pessoas, ou 11% da população. O Unicef lembra que as políticas voltadas para adolescentes não alcançam populações vulneráveis, são descontinuadas e conduzidas de uma forma que mais se assemelha a projetos-piloto.
Entre as sugestões apresentadas, destaque-se a que propõe ao governo federal a elaboração de projeto específico, dentro do Plano Nacional de Educação, para os adolescentes fora da escola. Observe-se que o relatório do Fundo da ONU chega a conclusões semelhantes às de outros diagnósticos, que apontam para os altos índices de evasão escolar entre jovens, muitos dos quais abandonam os estudos seduzidos pela ampliação da oferta de empregos nas mais diversas áreas.
Como fato positivo, há o reconhecimento de que a universidade pública vem acolhendo cada vez mais adolescentes pobres. Mas persiste na sociedade a discriminação contra negros e índios. Os negros têm multiplicado por quatro, em relação aos brancos, os riscos de serem assassinados. Um adolescente indígena tem três vezes mais possibilidade de ser analfabeto do que os adolescentes em geral. Jovens, sem distinções de cor e classe, como ressalta o Unicef, não podem ser vistos apenas como projetos de adultos, mas como sujeitos, como cidadãos, dos quais o Estado ainda sonega uma educação de qualidade e outros direitos capazes de reduzir desigualdades e equalizar oportunidades.
O Brasil dos adolescentes brasileiros está desconectado do Brasil dos adultos, que evolui economicamente e oferece oportunidades de ascensão profissional e social cada vez mais escassas nos países ricos. No país de quem tem de 15 a 17 anos, um quinto dos jovens está fora da sala de aula. O dado é um desalento que o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) oferece às autoridades como alerta, em relatório sobre a situação da adolescência no Brasil. O documento é um retrato sombrio de uma etapa da vida decisiva para a definição de futuros individuais e coletivos. Quando deveriam se afirmar como cidadãos, milhões de adolescentes brasileiros são tratados com descaso por sucessivos governos. O relatório do Unicef tem o poder de denunciar o fracasso das políticas públicas em educação, em saúde, em ações contra a violência e na criação de perspectivas concretas de mudanças, em especial entre jovens de famílias de baixa renda.
São muitas as consequências desse desleixo, que produzirá efeitos perversos durante um longo período, como adverte o Unicef. Jovens que abandonam a escola desperdiçam chances e são os mais vulneráveis aos apelos da criminalidade e aos danos de todo tipo de violência. Os números são implacáveis: de cada grupo de 100 mil pessoas da faixa etária de 12 a 17 anos, 19 foram assassinadas no Brasil em 2009. São 11 homicídios de meninos e meninas por dia. A taxa de mortalidade de outra faixa, de 15 a 19 anos, é o dobro da registrada entre a população geral. Os jovens brasileiros morrem de forma violenta por morarem em áreas sequestradas pela delinquência, por se envolverem direta ou indiretamente com o crime e também porque são vítimas de acidentes de trânsito.
Não deixa de ser um paradoxo que o país tão eficiente na condução de sua economia seja o mesmo omisso em relação aos adolescentes, que representam um contingente de 21 milhões de pessoas, ou 11% da população. O Unicef lembra que as políticas voltadas para adolescentes não alcançam populações vulneráveis, são descontinuadas e conduzidas de uma forma que mais se assemelha a projetos-piloto.
Entre as sugestões apresentadas, destaque-se a que propõe ao governo federal a elaboração de projeto específico, dentro do Plano Nacional de Educação, para os adolescentes fora da escola. Observe-se que o relatório do Fundo da ONU chega a conclusões semelhantes às de outros diagnósticos, que apontam para os altos índices de evasão escolar entre jovens, muitos dos quais abandonam os estudos seduzidos pela ampliação da oferta de empregos nas mais diversas áreas.
Como fato positivo, há o reconhecimento de que a universidade pública vem acolhendo cada vez mais adolescentes pobres. Mas persiste na sociedade a discriminação contra negros e índios. Os negros têm multiplicado por quatro, em relação aos brancos, os riscos de serem assassinados. Um adolescente indígena tem três vezes mais possibilidade de ser analfabeto do que os adolescentes em geral. Jovens, sem distinções de cor e classe, como ressalta o Unicef, não podem ser vistos apenas como projetos de adultos, mas como sujeitos, como cidadãos, dos quais o Estado ainda sonega uma educação de qualidade e outros direitos capazes de reduzir desigualdades e equalizar oportunidades.
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