domingo, 28 de fevereiro de 2016

PICASSO VAI À FASE



ZERO HORA 8 de fevereiro de 2016 | N° 18459

LARISSA ROSO E JÚLIO CORDEIRO

Texto: larissa.roso@zerohora.com.br
Fotos: julio.cordeiro@zerohora.com.br


JOVENS INFRATORES RECRIAM obras do pintor espanhol em exposição que terá abertura em 15 de março no Memorial do Ministério Público, na Capital. Dinheiro arrecadado com venda dos trabalhos será revertido aos internos



Diante de folhas de papel pardo afixadas na parede, os alunos fazem um exercício respiratório, com movimentos ritmados de inspiração e expiração, enquanto riscam formas aleatórias espontaneamente. Os participantes da oficina Artinclusão são internos da Comunidade Socioeducativa (CSE), unidade da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) que concentra os jovens de perfil mais agravado do Estado, envolvidos em crimes como homicídio e latrocínio (roubo com morte). Eles chegam para as primeiras aulas, muitas vezes, estressados, contrariados, entediados pela rotina de meses ou anos em regime de privação total de liberdade.

– Me tiraram da cama para fazer isso? – desdenha um adolescente ao deparar com giz de cera, julgando estar sendo submetido a um exercício demasiado infantil para sua faixa etária.

A atividade tem o objetivo de relaxar, permitindo que os aprendizes se concentrem para a tarefa que será realizada nas duas horas seguintes e externem suas sensações mais profundas. Inspira, expira, pinta. Aloizio Pedersen, artista plástico e idealizador do projeto, aproxima-se de Juliano*, 19 anos:

– O que você está vendo aí?

Juliano observa o resultado prévio de sua incursão inicial e despretensiosa pela arte. Identifica oito traços no mural.

– A minha família – constata o garoto, visualizando a representação rudimentar dos pais, dos cinco irmãos e de si próprio que construiu sem se dar conta.

Abismado com a aparente vidência do mestre, o estudante questiona:

– O senhor é pai de santo?!

Motivador, o diálogo estimulou Juliano a seguir frequentando os encontros por três meses e a concluir o primeiro quadro de sua vida. Professor da rede estadual, Aloizio, atuando na Fase há três anos, promoverá a partir de 15 de março, no Memorial do Ministério Público, a 10ª exposição com obras de internos – pela primeira vez, a mostra será composta por telas concebidas pelos autores dos delitos mais sérios, convidados a executar releituras das criações do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973). Os trabalhos são colocados à venda, e o valor, como incentivo, é repassado aos infratores. Alguns dos rapazes costumam comparecer ao evento no dia da abertura – há encontros emocionados entre filhos e pais, orgulhosos dos artistas forjados na reclusão da Vila Cruzeiro.

Guernica, uma das obras mais famosas e reverenciadas de Picasso, retratando a devastação causada pelo bombardeio nazista sobre a cidade basca de Guernica na Guerra Civil Espanhola, está entre os quadros que Aloizio apresentou à turma. No perfil dos internos, são recorrentes pelo menos três características: a origem em famílias desestruturadas, um histórico em que eles próprios foram vítimas de violência – com frequência, dentro de casa – e a existência de parentes próximos também criminosos.

– Eu queria trabalhar a violência desses guris, o que eles tinham a ver com essa obra, o que eles acrescentariam a ela – explica Aloizio.

Samuel, 18 anos, é um dos alunos que recriaram Guernica. Em sua terceira passagem pela Fase – desta vez, devido a um homicídio –, ele optou pelo trecho do original onde desponta a cabeça de um cavalo. Como os demais colegas, ficou à vontade para acrescentar à releitura elementos de livre escolha. O garoto não consegue justificar por que decidiu inserir uma flor, figura que já havia surgido em outro trabalho seu na oficina. Membros da equipe assistencial perceberam uma evolução: no princípio, os rabiscos de Samuel se assemelhavam a algemas. Com o tempo, os traços se tornaram mais nítidos: as argolas de metal viraram flores.

– Ele fez sem se dar conta. Internamente, começou a trabalhar questões mais positivas – atesta Gabriela Cioccari Santos, psicóloga da CSE.

Nos dias de visita, Samuel recebe a namorada, que vem do Interior em uma viagem de duas horas. Romântico, gosta de escrever poemas à menina. Ela suplica:

– Larga essa vida de cadeia.

Como outros companheiros de clausura, Samuel está atrasado nos estudos – ainda cursa a 6ª série. Copia o conteúdo sem absorvê-lo, tem extrema dificuldade para progredir, há momentos em que não compreende o vocabulário corriqueiro de uma conversa. Ao observar sua versão de Guernica concluída, exposta em um dos corredores do prédio à espera da exposição, admira-se:

– Parece que não fui eu que pintei. Não levava muita fé em mim.

Aos 19 anos, Renato cumpre medida socioeducativa há um ano e 10 meses por ter participado de um latrocínio. Inconformado por ter de entregar o carro, o homem que foi vítima do roubo, pensando estar sendo ameaçado por uma arma de brinquedo, encorajou-se a reagir. Entrou no veículo já em poder de Renato e de um amigo, surpreendendo-os pela ousadia.

– Qual foi a parte que você não entendeu que isso aqui é um assalto?– exaltou-se Renato na ocasião.

Segundo o relato do interno, o comparsa teria então apertado o gatilho. A sequência de fatos é imprecisa: uma tentativa frustrada de vender o carro, uma “banda” pela cidade. Sob o efeito de drogas, Renato não registrou os detalhes.

– Eu tava muito louco nessa noite – conta.

Na oficina de arte, ele também retratou uma porção do cenário desolador de Guernica. Uma âncora ocupa quase toda a tela de 1m20cm x 0,70cm. A robustez do objeto tem significado evidente: representa o apoio recebido da família. Duas vezes por semana, a mãe aparece na CSE com salgadinhos, bolachas e frutas para o filho.

– Eles colocaram uma pedra em cima do que aconteceu. Estão me dando uma segunda chance – afirma Renato.

UMA TENTATIVA DE RECOMEÇO

Superada a estranheza do princípio, os internos passam a encarar as aulas de arte como uma possibilidade de fuga do cotidiano quase imutável. Juliano, o rapaz que desenhou os oito riscos representando a família, logo descobriu que replicar no branco da tela as formas de As Três Dançarinas era um desafio capaz de lhe serenar a fervura da mente. Do exemplar surrealista de Picasso, Juliano elegeu o personagem central: uma figura de braços erguidos e seios desnudos.

– Foi muito bom para mim. Aprendi muita coisa. Às vezes o cara está estressado, dá para esquecer muita coisa.

O interno conta que sua trajetória começou a entortar cinco anos atrás, aos 14. Até entrar na Fase, vivia de roubo e tráfico – dois de seus cinco irmãos estão presos. Um assalto a uma loja, que terminou com a morte de um comerciante, levou-o ao confinamento, que já dura um ano e nove meses.

Juliano estava longe de casa quando o filho nasceu. Lamenta não ter testemunhado o menino começando a caminhar. As duas ou três visitas mensais da criança interrompem o dia a dia que julga tedioso, de muitas horas trancado no “brete” (como são chamados os dormitórios individuais, semelhantes a celas, fechados a cadeado). Por falta de passatempo mais interessante, ele assiste à novela A Regra do Jogo, da TV Globo. Gosta de acompanhar o desenrolar do enredo envolvendo a facção criminosa – os bandidos da ficção são arrogantes e violentos como os da vida real, garante Juliano.

Quanto ao futuro, o desejo é mudar de cidade e conseguir emprego em um frigorífico.

– Quero ficar tranquilo, caminhar podendo olhar para trás – justifica.

Os planos de Juliano simbolizam o cenário ideal almejado para os internos depois de concluídas as medidas socioeducativas: um recomeço longe do crime. Muitos voltam a delinquir ou morrem em seguida, após cruzar o portão da CSE, por conta de rixas que permaneciam em suspenso, no aguardo de um desfecho. A psicóloga Gabriela destaca as conquistas, ainda que transitórias, de projetos como o Artinclusão, que consegue dar um mínimo de leveza a biografias tão intrincadas.

– Não queremos disfarçar que eles não são bandidos, que não têm um potencial de risco para a sociedade. Eles se sentem muito malvistos, com baixa autoestima, e buscam o crime para terem visibilidade. Tentamos trocar isso por um trabalho que possa ser visto pela sociedade – explica Gabriela. – Queremos fazer aflorar outra coisa: além de serem traficantes, o que mais eles podem ser? – provoca.

Responsável por introduzir, durante as sessões com pincéis e tintas, uma brecha de liberdade na rotina do cárcere, o professor Aloizio se aventura em uma resposta:

– Com a arte, você trabalha o indivíduo integralmente: a emoção, o intelectual. Bota tudo para fora. Sobra lugar dentro para aprender outras coisas. Esses meninos vêm da invisibilidade, e agora ele são artistas. Por trás deles tem um mundo de coisas. A vida vai lhes dar outras possibilidades.

* Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

OS JOVENS E O CRIME




ZERO HORA 27 de janeiro de 2016 | N° 18427


EDITORIAIS



A criminalidade entre os jovens acionou mais um alarme, desta vez nas estatísticas sobre a internação de jovens infratores no Estado. Entre 2011 e 2015, o número de internados por assaltos, em unidades da Fase, aumentou 79,2%, e o de envolvidos em assassinatos cresceu 77,4%. Não é um fenômeno recente, mas o dado novo é o assustador crescimento da delinquência na adolescência, como revelou reportagem publicada por Zero Hora. Confirma-se uma tendência nacional, de aumento do envolvimento de jovens e até mesmo crianças com o crime. Tanto que, por vários motivos, mas especialmente pela proximidade com criminosos, 28 jovens são assassinados por dia no Brasil.

O adolescente passa a ser um infrator grave, muitas vezes pela autoria de homicídios, e ao mesmo tempo é vítima da ação descontrolada de traficantes e assaltantes. A punição, prevista em estatuto específico, certamente não é a única solução para esse cenário. Fica cada vez mais evidente que a sociedade precisa, ao mesmo tempo que pune, oferecer programas de prevenção, que passem pela família, pela escola e pelas instituições. Essa não é, portanto, uma tarefa apenas do poder público, embora caiba aos governantes e aos órgãos responsáveis pela infância criar e fiscalizar espaços de educação e lazer para a juventude. O dever dos pais, de seus eventuais substitutos e de todo o entorno familiar também não pode ser negligenciado.

É importante que, entre as causas do quadro desolador que se apresenta, seja levado em conta o dano causado pelo mau exemplo oferecido pelos adultos. Como observa o juiz aposentado João Batista Saraiva, a partir da experiência pessoal e como consultor do Unicef, é preciso considerar que o descrédito nas autoridades e nas instituições, abaladas por escândalos, interfere diretamente no comportamento dos jovens. Reverter esse quadro significa enfrentar, ao lado dos adolescentes, uma realidade que conspira contra os que se esforçam pela postura ética dos jovens e também dos que deveriam inspirá-los.

domingo, 17 de janeiro de 2016

REAÇÃO À VIOLÊNCIA JUVENIL



ZERO HORA 17 de janeiro de 2016 | N° 18417


EDITORIAL


A agressividade entre adolescentes, que resulta em tragédias, cresce na mesma medida da omissão dos adultos.




As mortes provocadas por conflitos entre adolescentes acionaram, há muito tempo, um sinal de alerta ainda sem resposta adequada das instituições, da família, da escola e das comunidades. O Rio Grande do Sul enfrentou, na semana passada, mais um desses traumas, quando uma menina de 14 anos foi esfaqueada por outra de 15 anos, em Bagé, porque ambas estariam disputando o mesmo namorado. Outro exemplo de morte absurda é o do menino de 17 anos massacrado por outros jovens, alguns adultos, tomados por fúria coletiva, em agosto do ano passado, na saída de um clube de Charqueadas. São casos que, por terem resultado em morte, têm compreensivelmente maior repercussão.

Mas a violência juvenil repetida, quase banalizada, produz também outros danos cotidianos, com sequelas físicas e também psicológicas nas vítimas, nos familiares de agredidos e agressores e nas pessoas que com eles convivem. Jovens agridem-se na escola, nas ruas, em clubes, em jogos de futebol. O mais banal dos motivos é capaz de provocar enfrentamentos não só individuais, mas ações em grupo. Passou da hora de o Brasil enfrentar a epidemia de violência entre meninos e meninas a partir da verificação de causas, para que as reações não sejam apenas as punitivas.

É evidente, pelos indícios disponíveis, que a agressividade vem sendo potencializada pela postura de expressivo contingente nas redes sociais. O mundo virtual, com tudo o que contribui para comunicar e aproximar, acaba por agregar também a outros tantos fatores o estímulo à agressão, à disseminação do ódio, à transformação de debates em duelos e à transposição de comportamentos antissociais para a vida real. O anonimato muitas vezes oferecido pela internet ganha rosto, nome e sobrenome no desfecho de casos como os citados acima.

É o resultado da perda de referências, limites e respeito mútuo. Multiplica-se um fenômeno que envergonha o Brasil. Os jovens entre 15 e 29 anos já são as principais vítimas das mortes por armas de fogo no país, numa tragédia em grande parte explicada pela degradação provocada pela guerra das drogas e pela disputa de espaços. Mas, fora desse contexto da criminalidade, há também uma propensão à violência entre adolescentes sem qualquer relação com delinquentes e entre as mais variadas classes sociais.

Para compreender e enfrentar o que se passa, o Brasil poderia copiar experiências como a do Instituto de Direitos Humanos da Catalunha e da organização espanhola United Explanations, que tentam interferir direta e positivamente, via redes sociais, em debates que possam fomentar o ódio, a discriminação e a intolerância. É outro o contexto, de um país também atordoado pelas migrações, mas que serve como exemplo de abordagem, sempre no sentido da pacificação. É óbvio dizer também que família, escola e seus entornos não podem apenas se indignar com o que ocorre. É preciso agir, em mutirões como o que acontece na Espanha, para que os próprios jovens sejam propagadores de paz e tolerância. Mas essa é, essencialmente, uma missão para os adultos.