domingo, 31 de maio de 2015

O JEITO CERTO DE DISCUTIR MAIORIDADE PENAL


Como tratar menores infratores? Apresentamos sete propostas para você votar e definir a sua opinião

ALINE RIBEIRO E THAIS LAZZERI
22/05/2015





Baixar ou não para 16 anos o limite da maioridade penal é uma questão importante para a sociedade brasileira no momento. Mas, em se tratando de segurança pública e como tratar menores infratores, há outras questões cruciais. Como punir cada infração? Como aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)? Como reintegrar esses adolescentes à sociedade? É preciso mudar as instituições responsáveis por cuidar dos adolescentes infratores?

Esse não é um daqueles temas em que países desenvolvidos tenham resolvido o assunto e possam servir de modelo. Há democracias desenvolvidas que punem adolescentes mais duramente do que o Brasil. Entre eles estão o Canadá (14 anos) e Suécia (15 anos). O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) se dedicou a analisar a legislação penal de 53 nações. Constatou que, em 42 delas (79%), a maioridade penal é fixada em 18 anos ou mais. Algumas experimentaram reduzir esse limite, e acabaram voltando atrás, como Espanha e Alemanha. Nos EUA, 47 dos 50 Estados ampliaram as penas para menores infratores ao longo dos anos 1990. Nos 20 anos seguintes, o número de jovens em prisões comuns subiu quase 230%. Hoje existe uma onda em sentido contrário – o de abrandar as leis.

É hora de discutir o tema no Brasil com serenidade e seriedade, sem preconceitos, dogmas ou arroubos emocionais. E perceber que a questão vai além do limite de 16 ou 18 anos. Seis das sete propostas levantadas por ÉPOCA dão a entender que o fundamental é separar quem comete crime grave de quem comete crime leve. O ECA faz essa indicação, mas não é respeitado. Há consenso de que os crimes graves devem ser punidos. O que varia, entre as propostas, é a forma de punição.


Leia sete propostas desse debate e vote, ao fim do texto, naquelas que você apoia:


Defensores: Pepe Vargas, ministro dos Direitos Humanos, e Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro dos Direitos Humanos.
O que defendem: a permanência da lei vigente. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), menores entre 12 e 18 anos que cometem infrações de qualquer gravidade recebem medidas socioeducativas, cumpridas em liberdade ou em casas de internação. Nem o estatuto nem o juiz estipulam um tempo para o recolhimento. A cada seis meses, os jovens são reavaliados – e podem ser libertados ou continuar reclusos. O tempo máximo de internação é de três anos, e o jovem não pode permanecer nessas casas depois dos 21 anos. A lei é parecida com a da maioria das democracias maduras. Vargas e Pinheiro defendem o sistema porque acham que uma redução da maioridade penal apenas colocaria um novo grupo de jovens em contato, nas prisões, com presos adultos e o crime organizado.
Críticas: a lei vigente prevê a separação por tipo de crime, idade e porte físico. Na prática, os adolescentes ficam juntos. O crime organizado aproveita a lei para recrutar soldados entre adolescentes. Como não permite a internação por mais de três anos, deixa uma sensação de impunidade nos casos dos infratores mais perigosos. O ECA tampouco determina uma punição específica para cada tipo de crime, como faz o Código Penal, o que dá muita liberdade aos juízes. Uma mesma infração recebe tratamentos muito diferentes.




Defensor: Ariel de Castro Alves, advogado e membro do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente de São Paulo.
O que defende: para crimes contra a vida e latrocínio cometidos por adolescentes a partir de 14 anos, a internação teria um prazo estipulado previamente de até três anos. Na lei atual, não há tempo de internação fixado previamente. Além disso, o menor infrator poderia ter mais três anos de semiliberdade e três de liberdade assistida. Nesse modelo, um adolescente de 17 anos que cometesse um crime poderia ficar até os 26 anos sob custódia da instituição. Alves defende que sua proposta acaba com o problema de libertar imediatamente jovens de 21 anos que cometeram delitos graves. Alteraria o ECA.
Críticas: a liberdade semiassistida exige ampliação das vagas em dormitórios. Medidas em regime semiaberto exigem mais empenho dos municípios. “São raros os lugares que executam isso de forma eficiente. A maioria finge que cumpre, e o infrator finge que está no programa”, diz o juiz da Infância e da Juventude Reinaldo Cintra.




Defensores: Geraldo Alckmin, governador de São Paulo (PSDB), e Berenice Giannella, presidente da Fundação Casa de São Paulo.
O que defendem: adolescentes reincidentes em infrações graves, como homicídio e latrocínio, podem ficar internados por até oito anos. O ECA teria de permitir que um jovem ficasse internado até depois dos 21 anos. O Estado criaria novas instalações, nos moldes da Fundação Casa, com tipos de internação adaptados a cada faixa etária. Haveria cursos técnicos e a possibilidade de trabalhar.
Críticas: exige investimento e arcabouço jurídico para a criação de novas unidades (as atuais já estão superlotadas). “Nas prisões, temos mais de 700 mil presos para 300 mil vagas. Em São Paulo, temos 300 mil presos para 100 mil vagas. Onde os adolescentes serão mantidos?”, diz o advogado Ariel de Castro. A proposta não oferece detalhes sobre se as novas instituições seriam mais parecidas com os presídios ou com as casas de internação.




Defensor: Ari Friedenbach, advogado e vereador (Pros-SP). Pai de Liana, estuprada e assassinada em 2003 por um menor de idade, em São Paulo.
O que defende: a responsabilização criminal, a partir de 12 anos, para homicídio, latrocínio, estupro, assalto a mão armada e sequestro. Uma junta médica avaliaria a condição psicológica do menor para embasar a decisão do juiz. A pena seria de um terço ou dois terços da aplicada a um adulto, de acordo com antecedentes e agravantes. A pena seria cumprida nas instituições de internação. Se o jovem cometer outro crime depois dos 18 anos, sua ficha como menor infrator seria resgatada, para que ele fosse julgado como reincidente. Hoje, o jovem sai sem antecedentes criminais.
Críticas: cria um custo para a junta especializada funcionar e não diz em quanto tempo o processo deve ser encaminhado ao juiz. Prevê mais vagas de internação, o que exige investimento. Cria a possibilidade de um adolescente ser preso aos 12 anos e ficar privado da liberdade por décadas.




Defensor: Aloysio Nunes, senador (PSDB-SP).
O que defende: reduzir a maioridade para 16 anos em crimes hediondos, como tráfico, tortura, homicídio e terrorismo. Nesses casos, o adolescente poderia ser julgado de acordo com a lei penal, desde que comprovada sua capacidade de compreender a gravidade do crime. Ele não iria, no entanto, para cadeias comuns. Cumpriria pena em novos centros, criados especialmente para essa faixa etária. Caberia a um juiz decidir o destino do menor. A proposta se beneficiaria de uma alteração na Constituição Federal, que reduzisse a maioridade penal.
Críticas: além de criar novos custos, a proposta não especifica como seriam as unidades para esses jovens.




Defensora: Marisa Deppman, advogada, mãe de Victor Hugo, vítima de latrocínio cometido por um menor de idade em 2013.
O que defende: redução da maioridade para 16 anos em caso de crimes hediondos. O menor deve iniciar a pena em uma unidade de maior segurança, dentro das casas de internação. Aos 18, seria transferido para prisão comum.
Críticas: não existem nas instituições hoje espaços de maior segurança. O trabalho de ressocialização feito nas unidades para menores poderia ser perdido na transferência para as cadeias. “Se baixarmos a maioridade para crime hediondo, o adolescente envolvido com tráfico de drogas será tratado como homicida. É a solução?”, diz o ministro Pepe Vargas, dos Direitos Humanos.




Defensor: Benedito Domingos, presidente do PP no DF. É dele a PEC 171, que reacendeu o debate sobre a redução da maioridade penal no Congresso.
O que defende: a alteração da redação do Artigo 228 da Constituição. Para Domingos, o menor tem plena consciência de seus atos. Por isso, deve ser julgado como adulto. As penas, no entanto, seriam diferentes das aplicadas aos adultos. Entre 16 e 18 anos, a pena pode ser um terço da aplicada pelo Código Penal. Domingos defende separar os jovens por faixa etária.
Críticas: não há previsão de plano de ressocialização, só punição. A proposta não diz ainda onde esses adolescentes ficariam reclusos. “Investir no adolescente é uma questão-chave. Se você não o trata bem, cria chance de ele voltar à delinquência”, afirma Carlos Nicodemos, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.



Leia em ÉPOCA desta semana mais conteúdos sobre o debate em torno da maioridade penal e das propostas para lidar com menores infratores.




É hora de discutir a redução da maioridade penal com seriedade. A proposta para julgar e punir infratores de 16 anos como adultos recebeu sinal verde para ir à votação no Congresso

02/04/2015 - 23h47 - Atualizado 28/04/2015 22h21


(Ilustração: Espaço Ilusório)

Por horas a fio, na semana passada, manifestantes seguraram cartazes e cantaram rimas ensaiadas na porta do plenário onde a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), da Câmara dos Deputados, votava a constitucionalidade de uma proposta que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. Após quase 22 anos, a admissibilidade da proposta foi aprovada, sob os protestos de uns e gritos de júbilo de outros. No jargão legislativo, isso significa que a matéria vai poder tramitar e ser votada.

No Brasil, e em mais de 150 países, pessoas são consideradas adultas a partir de 18 anos. Infratores mais novos cumprem penas mais leves, em unidades socioeducativas. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171 estabelece que jovens a partir de 16 anos passem a ser julgados e condenados à cadeia como adultos. A proposta é mais branda do que a lei dos Estados Unidos, pela qual um juiz pode mandar prender, por décadas, um menor de 18 anos autor de crimes graves, como homicídio.


O Brasil era um país rural em 1940, quando estabeleceu a maioridade penal aos 18 anos. Hoje, a realidade é outra. O jovem de 16 anos é mais informado e fisicamente mais desenvolvido. Menores são recrutados pelas quadrilhas justamente porque estão sujeitos a penas mais brandas. Muitas vezes, aceitam cometer ou assumir a responsabilidade por delitos para aliviar as penas dos cúmplices com mais de 18 anos. Por isso, cresceu, nos últimos anos, conforme mostram as pesquisas, um sentimento favorável à redução da maioridade na maior parcela da população.

A medida, porém, está longe de ser consensual e suscita debates apaixonados na sociedade e no Parlamento, como mostram os artigos do senador Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB de São Paulo, a favor da redução da maioridade (numa versão mais branda da que foi considerada constitucional pela CCJ), e da deputada Maria do Rosário, do PT do Rio Grande do Sul, contra a redução. Obviamente, endurecer as penas contra os menores infratores não vai reduzir, por si só, o crime. Mas, com a decisão da CCJ da Câmara, chegou a hora de o país discutir, com seriedade, esse tema.

CRIMES HEDIONDOS ACIMA DE 16 ANOS DEVEM COMEÇAR NA FUNDAÇÃO E CONTINUAR NA PRISÃO


Marisa Deppman: "Defendo a redução da maioridade penal sem limite de idade" . Para a advogada, condenados por crimes hediondos com mais de 16 anos deveriam começar a pena na Fundação Casa e, após os 18, continuar a cumpri-la na prisão

MARISA DEPPMAN
REVISTA ÉPOCA 30/05/2015





Às 20h53 de 9 de abril de 2013, minha vida virou de cabeça para baixo. Meu filho Victor Hugo Deppman foi vítima de latrocínio praticado por um menor e bandido com 17 anos, 11 meses e 27 dias de idade. O crime ficou conhecido como “roubo do celular”. Um celular que custou a vida do meu filho.

Sou formada em Direito e, desde a graduação, sempre fui a favor da redução da maioridade penal. O jovem tem total consciência do que é certo e errado e o faz por escolha própria. Sei que há crimes e crimes. Para aqueles com menor potencial ofensivo, como furto simples, dirigir sem habilitação ou vandalismo, deve ser aplicado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Para os crimes hediondos, como homicídio, latrocínio e estupro, defendo que a maioridade penal seja reduzida, sem limite de idade. Além disso, o menor que pratica o crime hediondo deve, até os 18 anos de idade, cumprir sua pena em uma unidade de maior segurança da Fundação Casa, para que continue a ter o acompanhamento que ela oferece, para só então ser transferido para uma prisão comum.


Apesar da dor que sinto, sei que somente punição não basta. É necessário investir em educação, no combate às drogas e ao acesso fácil a armas, em medidas sociais na periferia, atividades de lazer e cultura, para não permitir que o jovem seja cooptado pelo crime. Mas, de forma concomitante, aprovar medidas que coíbam de forma drástica os crimes cometidos pelos menores. Eles precisam ter receio da punição que vão receber. Será que o bandido que executou meu filho o faria, se soubesse que teria de cumprir pena de até 30 anos, e não medida socioeducativa de até três anos? Pior: a presidente da Fundação Casa, Berenice Giannella, afirmou que o tempo médio de internação é de nove meses. No caso do meu filho, fui informada em fevereiro de 2015 que, apenas um ano e dez meses após ter executado Victor, o bandido estava em processo de soltura. Acredito que já esteja em liberdade. Isso é uma pena justa?

Acredito que não se deve levar a discussão sobre a maioridade penal para o campo da “luta de classes”, em que se diz que o executor do Victor, por ser negro e pobre, não tinha alternativas na vida. A teoria “do pobre coitado” não se justifica. A falta de estrutura familiar, valores cristãos e valores morais pode levar qualquer jovem, de qualquer classe social, para o crime. É questão de ter índole criminosa ou não. É questão de escolha. O jovem escolhe ser ou não bandido, simples assim.


Ideologias utópicas de esquerda tentam nos fazer crer que a maioridade penal não deve ser reduzida, por causa da parcela de menores que comete crimes hediondos ser maior ou menor, ou por causa do índice de reincidência do bandido menor de idade ser menor ou maior. Mas não resta dúvida de que o jovem infrator, ao deparar com a impunidade regida pelo ECA, vai se aprimorando na prática criminal. Se o bandido juvenil tem discernimento para entender o ato que pratica e “coragem” suficiente para matar cruelmente, e já que as medidas socioeducativas do ECA não atendem mais aos anseios da sociedade, só nos resta pedir: redução da maioridade penal, já!

Marisa Deppman é advogada, formada em Direito pela Universidade Cidade de São Paulo (Unicidi). Concorreu a deputada federal pelo PSDB no ano passado

CRIMES COMETIDOS TÊM QUE REAPARECER NA FICHA ADULTA AO INVÉS DE SUMIR

Ari Friedenbach: "Reduzir a maioridade penal só deslocaria o problema"

Para o advogado, os governos deveriam criar unidades punitivas e reeducativas ao mesmo tempo. E crimes cometidos na adolescência têm de reaparecer na ficha de criminosos adultos, em vez de sumir

ARI FRIEDENBACH
REVISTA ÉPOCA 30/05/2015
Ari Friedenbach sobre maioridade penal  (Foto: Arquivo pessoal)
Em 2003, por uma tragédia, minha vida mudou de forma drástica. Minha filha Liana, então com 16 anos, foi estuprada e assassinada por um menor de idade, conhecido por Champinha, e sua quadrilha. O choque e a dor me deixaram amortecido, sem rumo, dominado por raiva e vontade de vingança. Após o crime, passei semanas dormindo à base de medicamento. Buscava uma explicação. O tempo me fez rever os conceitos mais radicais e me fez entender que eu tinha uma missão: fazer algo para que a Justiça fosse mais severa e outras tragédias pudessem ser evitadas. Apoiar a simples redução da maioridade penal me pareceu uma solução imediata e simples. Mas não era esse o caminho.

Crimes graves praticados por menores de idade e a impunidade fazem parte do nosso dia a dia. O círculo vicioso requer ação imediata, mas também inteligente. Como advogado, passei a me aprofundar na legislação. Consultei especialistas, visitei unidades de recuperação de menores e acompanhei casos de famílias vítimas de violência. Elaborei uma proposta. Nesses 11 anos de estudo, entendi que reduzir a maioridade penal apenas deslocaria o problema para outras faixas etárias. Menores de 15, 14, 13 e 12 também cometem crimes graves e ficam impunes. Nove meses em uma unidade de ressocialização não é punição suficiente para um crime grave. E menores que cometem infrações de baixa periculosidade e apresentam condições de ressocialização não podem ser punidos na mesma proporção que um estuprador ou assassino.

Defendo a responsabilização do menor que comete crime grave ou violento – homicídio, latrocínio, estupro, assalto à mão armada e sequestro. A ideia é que, após o crime, o menor passe por um exame, por uma junta especializada, que avalie sua condição psicológica e sua consciência em relação ao ato. O parecer técnico embasará a decisão do juiz. Comprovado que o agressor está ciente do que fez, haverá a possibilidade de responsabilizar o menor, para que ele seja julgado. Isso requer alteração legal e não constitucional.

Uma vez condenado, o menor cumprirá pena e, paralelamente, passará pelo trabalho de ressocialização em uma prisão da Fundação Casa, um novo tipo de unidade a ser criado. Não adianta ele cumprir pena numa prisão comum, que não devolve ninguém ao bom convívio com a sociedade. Caso seja identificado algum distúrbio mental, o infrator deverá ser internado em unidades de saúde e interditado civilmente.

O julgamento deve aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), antecedentes e agravantes e a Lei de Execuções Penais (que garante a elaboração de um programa individual de privação da liberdade, adequado ao julgado). Outras duas medidas ajudariam: agravar a pena de maiores que usem menores para cometer ou assumir delitos e resgatar a ficha policial do jovem que reincida no crime, após a maioridade. Quem cometer crime como menor e depois como maior deve ser julgado como reincidente. Minha proposta é uma nova alternativa para o tema – mais severa, preventiva e justa.

Ari Friedenbach é advogado cível pela PUC-SP. Filiou-se ao PPS em 2010, tornou-se vereador em 2013 e hoje integra o Pros. Atua na Comissão Extraordinária Permanente de Segurança Pública

MORTE DE CICLISTA REACENDE DEBATE SOBRE MAIORIDADE PENAL


Morte de ciclista no Rio reacende o debate sobre a redução da maioridade penal. É hora de passar do choque à ação e lidar com o tema

ALINE RIBEIRO, CRISTINA GRILLO, HUDSON CORRÊA E THAIS LAZZERI
REVISTA ÉPOCA 30/05/2015





FACADAS
O local do assassinato do ciclista Jaime Gold (à dir.) no Rio de Janeiro, com placas de protesto colocadas por manifestantes. O principal suspeito é um menor de idade (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)

Daniel Gold, de 22 anos, suspeitou que havia algo errado quando, na noite de terça-feira (19), viu a foto que se espalhava pelas redes sociais. O ciclista ensanguentado, estirado na ciclovia da Lagoa Rodrigo de Freitas, parecia com seu pai, o cardiologista Jaime Gold, de 56 anos. O médico havia saído horas antes do apartamento em Ipanema, onde morava com os filhos – Daniel e Clara, de 21 anos –, para dar uma volta com sua bicicleta. Daniel mostrou a foto para Clara, que ligou para o celular do pai. Sem resposta, telefonaram para a mãe, a designer de interiores Márcia Amil, que acabara de ver a mesma foto na internet e, como Daniel, tivera um mau pressentimento. “Quando atendi o telefone, Clara disse: ‘Acho que aconteceu alguma coisa muito ruim com o papai’”, contou Márcia, com voz embargada, a ÉPOCA. No hospital, os filhos reconheceram as roupas do pai, que, naquele momento, já estava havia três horas em uma cirurgia. Cinco horas mais tarde, depois de ter recebido 2 litros de sangue em transfusão e sofrido duas paradas cardiorrespiratórias, Jaime Gold estava morto.


O cardiologista foi vítima de um crime bárbaro, que assustou os cariocas e que, nas últimas semanas, vem se tornando frequente. Atacado de surpresa por dois jovens também em uma bicicleta, foi esfaqueado com violência. Não teve tempo nem de decidir se reagiria ao assalto. Uma testemunha do crime contou aos policiais ter visto os algozes de Gold emparelhar com o médico e se atirar sobre ele, de uma forma que, à testemunha, pareceu ser uma saraivada de socos. Eram facadas. Uma delas cortou de forma tão profunda o abdômen do médico que deixou vísceras à mostra. “A bicicleta não era importada. Era só uma bicicleta. Por causa dessa bicicleta, ele foi estraçalhado”, diz Márcia.

Trinta e seis horas após a morte de Gold, a Divisão de Homicídios capturou um adolescente de 16 anos, suspeito do assassinato. Perto de sua casa, na favela de Manguinhos, Zona Norte da cidade, a polícia encontrou nove bicicletas, uma delas avaliada em R$ 30 mil, e facas e tesouras escondidas em um corredor. Reconhecido por uma testemunha, o adolescente negou ter cometido o crime. Em sua ficha, há 15 anotações por roubos e furtos, a primeira delas aos 12 anos, quando roubou um celular perto de onde Gold foi atacado. Cinco das anotações registram o uso de facas ou tesouras para intimidar as vítimas. Desde sua primeira infração, o adolescente passou três meses em instituições corretivas. Ele está na faixa etária dos 15 aos 17 anos, como 48% dos menores infratores detidos, segundo um levantamento da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (Sinase). O mesmo estudo conclui que 40% desses adolescentes têm envolvimento com roubos e 9% com homicídios. Dos 23.066 adolescentes em unidades socioeducativas no país, 43% foram criados só pela mãe, como o jovem carioca, e 43% são reincidentes. Nesta semana, a polícia apreendeu o segundo adolescente suspeito de participação no crime.


A morte de Gold e outro crime hediondo ocorrido em São Paulo na mesma semana – o estupro de uma menina de 12 anos por três adolescentes pouco mais velhos – trouxeram de volta a discussão sobre a redução da maioridade penal. Não é, como muitos supõem, um debate binário, um dilema entre reduzir ou não reduzir. Existem várias propostas em discussão no Brasil – ÉPOCA lista algumas delas aqui. Em comum, as propostas (com a exceção da que quer manter tudo como está) atentam para uma distorção da situação atual. O procedimento-padrão, baseado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não diferencia crimes graves de crimes leves. Isso dificulta a punição às infrações como o latrocínio. E também coloca em contato, nas instituições de internação, menores ligados ao crime organizado com outros que cometeram pequenos furtos.


Em São Paulo, um levantamento do Ministério Público mostrou que, de um total de 1.359 menores internados de agosto de 2014 a abril deste ano, 105 cometeram estupro, latrocínio e homicídio – crimes graves, passíveis do tempo máximo de reclusão. Só sete deles, porém, deverão ficar internados por mais de dois anos, e apenas um por três anos. “O prazo de internação é subutilizado porque as unidades estão superlotadas”, afirma Tiago Rodrigues, promotor da infância em São Paulo. A Fundação Casa afirma que o tempo médio de internação é de nove meses e, em caso de crimes graves, de um período mais longo. “A lei determina a brevidade da pena”, diz Berenice Giannella, presidente da Fundação Casa.

Além de colocar em contato menores que cometeram crimes leves com os que cometeram crimes graves, o sistema atual padece de outro problema: a superlotação das instituições de internação. Os Estados com piores índices são Ceará (221%), Pernambuco (178%) e Bahia (160%). Em 20% delas não há refeitório. Pelo ECA, os adolescentes deveriam ser separados por porte físico, idade e tipo de crime. “No Rio de Janeiro, a separação é por facção”, diz Carlos Nicodemos, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Entre os jovens infratores, 71% dizem ter sido agredidos por funcionários e 88% por policiais, na própria unidade de internação. Mais de 10% das unidades registram situações de abuso sexual contra o adolescente. “Com que cabeça um adolescente preocupado com sua integridade sexual numa cela lotada vai prestar atenção na aula no dia seguinte?”, afirma o promotor Rodrigues.

SUPERLOTAÇÃO
Rebelião numa unidade da Fundação Casa em São Paulo, em 2011. A instituição vem falhando na reintegração dos adolescentes (Foto: Marcelo Justo/Folhapress)

Algumas propostas preveem a criação de outro tipo de instituição, que ajude na socialização do menor. É o caso da PEC 33, do senador Aloysio Nunes (PSDB), apresentada em 2012. Ela também prevê a alteração da Constituição para reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos, mas somente em casos de crimes hediondos, como tráfico de drogas, tortura, homicídio e terrorismo. Mesmo assim, um juiz decidiria situação a situação. “Esses casos não chegam a 2% do total de crimes cometidos por adolescentes, mas são graves e merecem uma resposta”, afirma Aloysio Nunes. Pela PEC 33, esses adolescentes seriam julgados pela Vara da Infância e do Adolescente e, se comprovada sua capacidade de compreender a gravidade de seus crimes, cumpririam penas em centros especiais – nem na Fundação Casa, nem no sistema prisional para adultos. Essas instalações não existem hoje. A proposta de Aloysio Nunes ainda não foi colocada em pauta.


Para melhor compreender o crime que chocou o país há duas semanas, é necessário colocá-lo em perspectiva. Os homicídios diminuíram 7,5% na cidade do Rio no primeiro quadrimestre de 2015, em relação ao mesmo período de 2014, mas os roubos de rua aumentaram 7,5%. Uma comissão de segurança criada pelos ciclistas recebe por dia de dois a três comunicados de assaltos. Nos últimos dois meses, o uso de facas tornou-se constante. Os assaltos ocorrem com maior intensidade na Lagoa e no Aterro do Flamengo, na Zona Sul carioca, e nas imediações do Estádio Maracanã, na Zona Norte. Os criminosos nem sempre prestam atenção na marca da bicicleta. Roubam e depois decidem o que fazer. As menos valiosas serão usadas em outros assaltos. As mais caras, que custam até R$ 50 mil, terão suas peças revendidas em um mercado ilegal em franco crescimento. Presidente da comissão de segurança de ciclistas, o atleta de triatlo Raphael Pazos faz um alerta: “Sem nota fiscal e em site suspeito na internet, você pode estar comprando a bicicleta de alguém que foi esfaqueado”.

Entre os bandidos, popularizou-se o uso de armas brancas – facas, tesouras, estiletes. Em fevereiro, o turista alemão Fred Nicfind, de 51 anos, morreu esfaqueado em um assalto. Recentemente, uma turista vietnamita foi atingida nas costas e uma chilena foi esfaqueada no pescoço. No dia seguinte ao ataque a Gold, uma mulher de 31 anos ficou ferida nas pernas em São Conrado, Zona Sul. Nas imediações da Lagoa, outros três ciclistas foram feridos a golpes de faca em abril. A lei federal de 2003, que regulamenta o porte de armas, nada fala sobre facas ou instrumentos cortantes usados em crimes. Qualquer pessoa pode carregar uma lâmina afiada na mochila sem grandes problemas com a polícia.


É natural que as autoridades tenham dificuldades de explicar e propor solução para a onda de esfaqueamentos, mas isso não justifica declarações infelizes do governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) e do secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame. Um dia depois do ataque a Gold, Pezão disse que “quando (um bandido) usa a faca, não é um crime de grande monta que faça a pessoa ficar presa”. Corrigiu-se depois, afirmando que a legislação brasileira tem falhas e o Judiciário acaba soltando os agressores. No dia 12 de maio, Beltrame afirmara que a polícia não pode virar “babá de menores de idade, de moradores de rua, e ficar 24 por horas olhando a pessoa para ver o que ela vai fazer com uma faca”. Após o crime da Lagoa, gravou um vídeo no qual afirma que, “mais do que lamentável, é inadmissível” o assassinato ocorrido na Lagoa. Em vez de dar declarações impensadas, as autoridades fariam bem em avaliar as várias propostas em debate para lidar com o problema. Beltrame tem razão. Lamentar não adianta. Por isso, é hora de conversar seriamente sobre o assunto.


Infográfico sobre menor infrator (Foto: época )

terça-feira, 19 de maio de 2015

CACHOEIRINHA, ADOLESCENTES DO ESTADO ISLÂMICO?

CORREIO DO POVO Porto Alegre, 19 de Maio de 2015


OSCAR BESSI FILHO




O absurdo. Nada aquém disto. A foto foi pega por acaso, apenas porque policiais militares abordaram um trio suspeito de adolescentes, em Cachoeirinha, e apreenderam – além de simulacros de armas, certamente usadas para assaltos, e uma quantia de drogas – um celular. Sem esta abordagem, ela jamais teria sido descoberta. No telefone, a foto bizarra: adolescentes fazem pose como se estivessem para executar um Policial Militar. Este (que eles dizem ser outro amigo), está fardado, de joelhos, cabeça baixa, as mãos para trás, rendido. Fardamento completo da Brigada Militar, com gandola, boné, capa de colete, calça, cinto. O revólver de um dos adolescentes aponta para a cabeça do PM ajoelhado. O boné traz o o brasão da BM. A farda traz a insígnia de soldado e a bandeira do Rio Grande do Sul. O garoto que não segura a arma ainda veste uma jaqueta de couro da BM, usada no inverno, aberta e com as golas levantadas.

Não se resume, esta foto chocante, a uma fronta institucional. Ou uma afronta a um Estado inteiro e sua perspectiva de sociedade organizada e livre. Quando adolescentes mergulhados no mundo do crime, das drogas e da violência deixam claro que o seu sonho é este, executar de forma fria e covarde um agente público, justamente pago pelos impostos de todos os seus amigos e familiares para lhes proteger, algo está errado. E muito errado. A brutalidade tomou conta de mentes ainda em formação – e isto é uma falha terrível do Poder Público para com seu povo. Falta de respeito, insegurança, ausência educacional. Falta de credibilidade em qualquer outro caminho que não o da barbárie. A foto reflete, sob luzes sombrias, múltiplas faces do caos. Faces cada vez mais banais entre os nossos.

Impressiona a pose que, claramente, imita os terroristas do Estado Islâmico e suas execuções brutais e midiáticas. O ódio encontra amparo, respeito, reconhecimento e faz escola. E isto só acontece porque o terreno está fértil para este tipo de sentimento. Prefiro acreditar que tudo é reversível, sim, o problema é que falta vontade para reverter. Não formas.


É uma lástima que ainda não exista um encaminhamento imediato de recuperação aos jovens que não a prisão (ou apreensão, como queiram os técnicos, que no fundo é a mesma coisa). Apenas liberar porque “não há crime”, porque lá e cá já está lotado ou outra desculpa, é permitir que a doença se agrave e faça novas vítimas. É lavar as mãos. É deixar rolar e afirmar que a sentença do “não dá nada” pode estar presentes em todos os níveis da criminalidade, do colarinho branco e seus bilhões aos roubos e furtos que proliferam no cotidiano e nem se registra mais, por falta de fé.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

MENOR É AGREDIDO E ESTRANGULADO DENTRO DE UNIDADE PARA INFRATORES



O DIA 07/05/2015 11:24:55


Menor encontrado morto no Degase foi assassinado por outros internos. Laudo do IML aponta que adolescente não morreu por mal súbito, como foi divulgado na última quarta-feira


Rio - A versão de que um adolescente de 14 anos havia sofrido um infarto na manhã de quarta-feira, dentro de uma unidade do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), em Volta Redonda, mudou totalmente após um exame do Instituto Médico Legal (IML). Na verdade, a morte foi causada por lesões e estrangulamento, após ele ter sido agredido por outros três internos do Centro de Socioeducação Irmã Asunción de La Gándara Ustara.

Segundo nota oficial divulgada nesta quinta-feira pelo Degase, os três adolescentes assumiram o crime após a realização do exame do IML. O interno teria sido morto por ter violentado sexualmente de uma criança. Ainda de acordo com a nota, tanto o médico como o perito criminal, relataram, num primeiro momento, que se tratava de um mal súbito.

"Os menores agrediram a vítima com pontapés. Após isso, o estrangularam com uma gravata e um lençol. E, ainda, colocaram uma camisa em sua boca para que seus gritos não fossem ouvidos", afirmou o delegado da 93ªDP (Volta Redonda), Luiz Mauricio Armond, ao Diário do Vale.

A Polícia Civil e a Corregedoria estão investigando o caso e os três adolescentes vão responder a novo processo judicial, agora com ato infracional praticado durante o cumprimento de medida socioeducativa.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

CONSELHEIROS, ROTINA DE TERROR COM AMEAÇAS E ASSASSINATOS

G1 FANTÁSTICO Edição do dia 03/05/2015


Conselheiros tutelares vivem rotina de terror com ameaças e assassinatos. Chacina em Pernambuco expôs risco que conselheiros são submetidos. Profissional é guardião dos direitos da infância e adolescência.




Ameaças, espancamentos, assassinatos. As pessoas escolhidas pela comunidade para proteger as crianças vivem uma rotina de terror.

O Conselheiro tutelar é um guardião dos direitos da infância e adolescência. Tem o dever de aconselhar os pais, ouvir reclamações, apurar denúncias de abuso e maus tratos, e avisar a justiça caso uma criança esteja em perigo.

O problema é que há reações violentas contra esse trabalho tão importante. Uma chacina no interior de Pernambuco, no começo de fevereiro, expôs o risco a que estão submetidos conselheiros de todo o Brasil.

Em uma cidadezinha do interior, a emboscada fatal. “A gente procurou o chão, porque o chão sumiu”, diz a conselheira tutelar Maria Isabel.

Três dos cinco integrantes de um conselho tutelar assassinados de uma só vez. Podia ter sido eu”, diz Maria Isabel.

Na periferia da metrópole, a ameaça. “Batiam no vidro do carro e apontavam para o menino falando que ele ia morrer”, afirma o conselheiro tutelar Abel Gramacho.

O espancamento: “Foram tapas, pontapés. Tem até uma marca aqui ainda”, afirma o conselheiro tutelar Lourisvaldo Rocha.

Não o importa o tamanho da cidade, nem a região do país. Ser conselheiro tutelar virou atividade de risco. O Conselho Tutelar foi criado junto com o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. É composto por cinco moradores eleitos pela comunidade onde vivem, para que a própria sociedade cuide de suas crianças. No dia 4 de outubro, todos os municípios vão eleger novos conselheiros ao mesmo tempo, na primeira votação unificada do Brasil.

O mandato passa de três anos, como é hoje, para quatro anos. Os conselheiros são remunerados. As prefeituras têm autonomia para fixar o salário deles, a maioria paga salário mínimo de R$ 788 por mês. As cidades maiores pagam mais. Em Brasília, por exemplo, o salário de conselheiro é de R$ 4.684.

“Conselheiro, para mim, é anjo sem asa. É aquele que guia. É aquele que mostra um caminho”, diz conselheira tutelar Carla Patrícia.

Mas famílias que expõem crianças a algum risco nem sempre aceitam a intervenção de conselheiros que, muitas vezes, moram no mesmo bairro.

Mulher: A partir do momento que vocês "entrou" na minha vida, vocês "acabou" com a minha vida. Acabou!
Conselheira tutelar: Nosso intuito é tentar melhorar.
Mulher: Não. Não! Vocês não ajudaram. Vocês só ajudaram a atrapalhar.

“Hoje nós somos os bichos-papões das crianças. Porque a pessoa não diz à criança que o conselho está para lhe defender. Ela diz: ‘o conselho vai lhe punir, o conselho vai te prender’. E não é isso”, afirma conselheiro tutelar Anderson Amaro,

As polícias estaduais têm de dar segurança aos conselhos. E a lei diz que as prefeituras e, no caso de Brasília, o governo do Distrito Federal, têm de dar estrutura para que eles funcionem. O que nem sempre acontece. “A realidade é uma só: é descaso, é falta de prédio, é falta de transporte, é falta de material de trabalho, às vezes o básico”, afirma a conselheira titular Ildene Cardoso Rodrigues.

Em Tufilândia, no noroeste do Maranhão, o Conselho Tutelar funciona em uma sala acanhada.

Fantástico: O que vocês têm à disposição de vocês é esta sala apenas?
Nicilene Nogueira, conselheira tutelar: Sempre foi esta sala. Não é de agora não.

Não há privacidade para ouvir vítimas de abuso. Nem carro para fazer visitas. Nem orçamento o conselho tem, embora a lei mande destinar 2% do Fundo de Participação dos Municípios.

“Também não vamos botar a culpa só na administração que está hoje, porque todas as administrações que passaram por aqui é sempre a mesma coisa”, afirma o conselheiro Expedito Teixeira.

E o pior: a última eleição foi em 2003. Os conselheiros são reconduzidos pela prefeitura sem votação.

Nicilene Nogueira: Estamos já com 11 anos.
Fantástico: Mas por que nunca teve eleição?
Nicilene Nogueira: Porque os gestores nunca fizeram.
Fantástico: A prefeitura nunca providenciou?
Nicilene Nogueira: Não, nunca providenciou.

Tudo ilegal. Fantástico foi saber do prefeito o porquê disso. Mas ele não veio hoje.

É o chefe de gabinete quem se explica.

Fantástico: Por que até agora não foi feita uma nova eleição e permanecem os mesmos conselheiros desde 2003?

Edmilson Lopes: Sim. Observa só: essa gestão, ela responde a partir de 2013, 1º de janeiro de 2013.

Será que os políticos e prefeitos entendem a importância do conselho?

Edmilson Lopes: O Conselho Tutelar é de responsabilidade não da classe política, mas da sociedade civil organizada.
Fantástico: Mas a lei diz que a prefeitura tem de dar as condições para que o conselho possa funcionar plenamente.
Edmilson Lopes: Isso, a lei diz que a prefeitura tem que dar as condições, a lei diz que o município tem de funcionar na sua plenitude. Esse é o gabinete do prefeito. Você pode dar uma olhada nas condições e que é um pouquinho diferente da maioria das cidades onde você passou e fez outras matérias.
Fantástico: O senhor acha que o município não tem condições de dar ao conselho um funcionamento melhor do que ele tem hoje?
Edmilson Lopes: Nas atuais circunstâncias, não.

Essa precariedade se reproduz até mesmo na capital do país. Em 2013, o Fantástico mostrou o Conselho Tutelar de Samambaia, no Distrito Federal, cheio de goteiras. Mais de 100 processos destruídos pela água da chuva.

Chover, não chove mais. O telhado foi consertado logo depois da reportagem. Mas isso não significa que os problemas não se acumulem, especialmente no que diz respeito à segurança, ainda que a 100 metros do local exista uma delegacia de polícia.

“Tem uma delegacia aqui na frente, mas isso não intimidou os agressores. Aqui nesse local que a gente está, teve nove tiros aqui entre um assaltante e um policial”, afirma o conselheiro tutelar Ilton Teixeira.

Fora a surra que um conselheiro levou na sala dele, dentro do conselho. “Apanhou de pau aqui, teve sangue, o conselheiro tutelar registrou ocorrência policial”, conta Ilton Teixeira.

E o risco não se restringe aos horários de trabalho. “Nós somos integrantes dessa comunidade, nós somos dessa comunidade. Então a gente, às vezes, se sente. Você vai na padaria com seu filho e você se sente ameaçado”, diz Ilton Teixeira.

Em outra cidade do Distrito Federal, um conselheiro não sabe mais o que fazer.

Fantástico: Quantas vezes você já foi ameaçado?
Conselheiro tutelar: Fui ameaçado três vezes.
Fantástico: E agredido fisicamente, quantas?
Conselheiro tutelar: E agredido fisicamente duas vezes.

A primeira vez, foi perto da casa dele. “Murros, socos. Teve um momento em que eu caí, e nesse momento eu fiquei com mais medo porque eu pensei que eles iriam pular na minha cabeça”, afirma o conselheiro tutelar.

Na segunda vez, ele estava dentro de um ônibus. “Só que dessa vez eu apanhei muito, fui jogado de dentro do ônibus para fora, sangrei, meu nariz chegou a quase quebrar. Eu, nesse momento, realmente pensei: ‘acho que agora eu vou morrer’”, conta o conselheiro tutelar.

Voltou ao trabalho depois de ficar afastado por dois meses para se recuperar. Mas o medo nunca mais o abandonou. “Porque aí a gente cai na real de que é muito fácil você matar um conselheiro”, conta.

Foi o que aconteceu com Lindenberg Vasconcelos, Carmen Lúcia da Silva e Daniel Farias. Eles foram emboscados em uma estrada rural de Poção, no agreste de Pernambuco.

Os três conselheiros, uma menina de 3 anos, órfã de mãe, e a avó materna dela estavam no carro. Só a criança sobreviveu. A cidadezinha de 12 mil habitantes entrou em choque. “Ainda hoje eu não estou acreditando no que eu vi não”, diz o agricultor Luciano dos Santos Silva.

“Foi um sentimento para todo mundo. Porque Poção aqui nunca existiu dessas barbaridades, gente. De jeito nenhum”, afirma o agricultor Manuel José da Silva.

A polícia de Pernambuco prendeu seis envolvidos na chacina, inclusive a mandante: Bernadete de Lourdes Rocha, avó paterna da criança. Ela disputava a guarda da neta com a avó materna assassinada. Só um dos acusados está foragido: Welliton Silvestre que seria um dos pistoleiros.

Na varanda do Conselho Tutelar de Poção, um pano preto. Três novos conselheiros já assumiram.

Fantástico: Está como medo?
Elizer Bezerra: Com medo, mas estou aqui procurando fazer o que é melhor para a nossa sociedade.

Colegas das cidades vizinhas foram até lá fazer uma corrente de oração. “E nós queremos louvar por todo o trabalho que os nossos irmãos desempenharam nessa passagem deles aqui na Terra. E dizermos nós, que ficamos, que nós estamos na luta”.

Todos têm alguma história de ameaça para contar. “Algumas pessoas botando a gente para descer apontando arma para gente”, diz o conselheiro tutelar Rodrigo Angelo.

“Chegaram até a chutar a porta para tentar entrar e pegar a gente”, conta o conselheiro tutelar Claudivan Macena.

Não foi fácil preencher as vagas do conselho de Poção. Da imensa lista de suplentes, só Elizer, Donizete e Isabel toparam. Mesmo assim com restrições. “Se eu tiver que entrar no carro do conselho, eu renuncio. Eu renuncio. Não é que vai acontecer a mesma coisa. Mas psicologicamente eu não tenho condições de entrar e me sentar no mesmo lugar onde eu sei que os meus colegas foram assassinados”, afirma Isabel.

Isabel conviveu muito com os colegas assassinados, algumas vezes, cobrindo as férias deles.

“A gente sempre brincava para disfarçar o nervosismo. Só um que não era muito nervoso, que amava demais e não temia, era Lindenberg”, diz Isabel

Um homem de bem com a vida. Inteiramente dedicado às crianças da cidade. “Era o primeiro a chegar no Conselho Tutelar, era o último a sair”, conta Luís de França, pai de Lindenberg.

Lindenberg deixou mulher, dois filhos, e um pai inconformado. “Me orgulho do seu legado, da sua dedicação, da sua defesa aos mais humildes e aos mais necessitados. É o que eu posso dizer para o meu filho”, afirma Luís de França.

Daniel não tinha filhos. Carmen Lúcia deixou uma adolescente de 14 anos. “Eu só queria Justiça. Eu queria que eles pagassem pelo que eles fizeram”, diz a jovem.

Apesar do medo, os novos conselheiros de Poção já estão em campo. “Se a gente não assumisse, o conselho poderia fechar. E não é justo, pelo trabalho que os outros desenvolviam e que eles morreram trabalhando, a gente se acovardar, por medo”, destaca Isabel.

Há muito a fazer, em uma cidade tão pobre, com famílias enfrentando a escassez e a desesperança e encontrando nos conselheiros tutelares o único amparo possível.

“A gente não vai deixar o medo ser maior do que os sonhos e os ideais. Medo nós temos, mas nós temos de ir à luta”, afirma Isabel.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

ERA APENAS UM CRIANÇA

DIÁRIO GAÚCHO 30/04/2015 | 07h06



Renato Dorneles




Desta vez foi uma criança. Ainda que formalmente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Emanuel seja classificado nesta segunda condição, com 12 anos não há como não considerar que ele ainda deveria estar vivendo a sua infância. Não é assim que pensamos em relação aos nossos filhos?

A morte de Emanuel é mais uma trágica comprovação de que criminosos perderam todo e qualquer freio. Assassinar uma criança de 12 anos é dar uma demonstração de que vivemos um período de barbárie.


Há poucos dias, uma menina de sete anos morreu atingida por uma perdida. Agora, um menino de 12 é assassinado brutalmente em uma atitude pensada. A infância começa a sucumbir em uma guerra que não respeita critérios. A crueldade parece estar sem limites.

Maioridade penal


Sem entrar no mérito da discussão sobre o rebaixamento, ou não, da maioridade penal, analiso aqui um dos argumentos utilizados pelos defensores da mudança: “menores são usados por criminosos para acobertar as suas ações.” Essa é uma das linhas de investigação da polícia em relação à morte de Emanuel.

Aliás, recentemente, um conselheiro tutelar da Capital disse-me que mães têm procurado o órgão para denunciar que seus filhos de 11, dez e nove anos estão sendo aliciados por criminosos, pois nesta idade eles não vão para a Fase.

Bem, o relato do conselheiro tutelar, combinado com a trágica história de Emanuel, leva-me a uma reflexão: a solução é rebaixarmos a maioridade penal cada vez mais, até que seja esgotada a margem de inimputabilidade (não confundir com impunidade)?

FINAL TRÁGICO

DIÁRIO GAÚCHO 01/05/2015 | 07h04

Eduardo Torres

Como o Estado não pôde impedir a morte de Emanuel. Morte do menino Emanuel Gonçalves Rocha, aos 12 anos, demonstra situação crítica da infância nas ruas. Ele queria ficar na Fase como tábua de salvação.



Foto: Reprodução / Reprodução



A polícia ainda tenta entender como o menino Emanuel Vinícius Gonçalves Rocha, morto a tiros aos 12 anos na madruga de quarta, foi parar no Bairro Restinga, depois de ter sido visto na Praça da Alfândega, no Centro, horas antes. Há suspeita de que ele tenha sido levado à Zona Sul da Capital para traficar, mas nenhuma prova disso. Nos bolsos dele, os policiais encontraram somente um cartão.


Nele, estavam os contatos dos assistentes sociais do Ação Rua, vinculado à Fasc. Há muito, eles haviam se tornado o principal vínculo afetivo do menino que, desde os nove anos, perambulava pelas ruas de Porto Alegre. Na tarde de terça, ele não quis seguir com os assistentes. Horas depois, foi encontrado morto.

— Nós já temos muito menos crianças nas ruas, mas casos como o do Emanuel não deveriam mais existir. No momento em que ele morre, não é exatamente o serviço social que falhou, mas toda a sociedade errou e precisa refletir — avalia a psicóloga Lirene Sinkler, que coordena as equipes de Proteção Social Especial de Média Complexidade da Fasc.

Em três anos, Emanuel colecionou nove fugas de casa, de abrigos municipais e da escola.

— A concorrência da rua em qualquer tentativa de ressocializar esses meninos é desleal. O tráfico alicia e dá um certo status a eles muito rapidamente — reflete a psicóloga.

O menino era acompanhado por uma das 13 equipes do Ação Rua. Pelo menos quatro vezes, teve determinação judicial para ficar em um dos 68 abrigos municipais. Mas nunca ficou.

Para a coordenadora de Proteção Social de Alta Complexidade da Fasc, Lândia Cunha, o serviço de atendimento a crianças e adolescentes nas ruas deve sempre insistir na retomada da família.

— O ideal seria que os abrigos nem existissem — diz.

Essa reaproximação foi tentada pela última vez em fevereiro. Depois de um mês internado provisoriamente na Fase, a Justiça determinou que ele ficaria em semiliberdade em um abrigo de São Leopoldo, mais próximo da família.

— Nos pareceu uma medida excelente, porque o Emanuel precisava retomar esse contato. Infelizmente não funcionou — comenta Lirene.

Emanuel ficou apenas dois dias no abrigo e voltou às ruas.

Fase era a última esperança

Quando soube da morte do filho, o primeiro desabafo de Jocelaine Gonçalves Rocha, 40 anos (leia a entrevista), foi lembrar que o filho queria ficar na Fase, e não ir para um abrigo. A frase pode parecer contraditória, mas reflete uma realidade cada vez mais presente. A Fase virou tábua de salvação. Ao mesmo tempo em que o adolescente tem ali a garantia de não ser morto, como poderia acontecer na rua, muitas vezes é a última esperança de "endireitar".

— Quando o menino ingressa na Fase, no dia seguinte já tem uma visita de familiares programada. E na primeira semana, está matriculado na escola. Se a definição é por uma medida de internação, além da escola, esse menino receberá um curso profissionalizante ou uma oficina pedagógica. Ele nunca terá tempo ocioso — explica o diretor socioeducativo da Fase, André Severo.


Mas a passagem de Emanuel pela Fase teve uma peculiaridade. Durante os 30 dias que permaneceu no Centro de Internação Provisório Carlos Santos, em Porto Alegre, ele recebeu apenas uma visita da mãe. Quem mais o procurava eram os profissionais do Ação Rua. A conclusão foi de que a mãe, que criou ele e outros dois filhos sozinha, não tinha condições de se deslocar de São Leopoldo até Porto Alegre. Por isso, foi transferido.

— Mas essa aproximação com a família é complexa. Esse menino não tinha a história muito diferente do que encontramos aqui. Um pai ausente, falta de uma infância real e ausência de limites. Na Fase, parte disso ele encontrou — conclui o diretor.



A rede de proteção:

Porto Alegre conta com 13 equipes do Ação Rua, que fazem a abordagem das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

São 68 unidades de acolhimento na cidade (46 casas lares com até 20 crianças e adolescentes e 22 abrigos com até 10 crianças e adolescentes).

Os estágios da proteção:

Um menino encontrado em situação de rua é encaminhado ao Conselho Tutelar e outras entidades municipais de acolhimento.

O entendimento pode ser pela entrega dele à família ou algum abrigo. A decisão de abrigá-lo, no entanto, cabe ao Judiciário.

Se este menino é pego cometendo algum ato infracional, sua punição passa por quatro etapas: advertência, prestação de serviços à comunidade, reparação do dano, semiliberdade e internação.

Depois de cometer um roubo a pedestre no Centro, Emanuel foi internado provisoriamente na Fase. Depois de 30 dias, a definição foi de que ele cumpriria medida socioeducativa em semiliberdade em um abrigo de São Leopoldo.

O delito cometido por ele, e o seu histórico, não eram passíveis de cumprimento de medida em regime fechado.